domingo, 13 de novembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Tráfico de órgãos

DR
Algumas coisas são inevitáveis na vida. A morte é a maior de todas elas seguida por confundir feijão com sorvete no congelador, queimar a boca com comida preparada no microondas, o ônibus passar direto mesmo com você fazendo sinal para ele, levar à boca algo não identificado achando que era uma migalha do que comia e que caiu no sofá (essa, na realidade, é bastante corriqueira comigo e gostaria de testar se acontece com vocês também), uma baita dor de barriga em um local público, a impressora parar de funcionar quando se tem poucos minutos para entregar um documento importante e a famigerada DR (discutir a relação para os mais distraídos às siglas). Entrando no mérito de qual delas as pessoas mais temem, a DR encabeça a lista. Principalmente se a DR rolar num jantar com casais na casa de um amigo.
Estatísticas, recentemente divulgadas por um grupo de pesquisa que preciso manter o anonimato para evitar que descubram que as inventei, indicam que o estopim para uma DR varia de acordo com o sexo da pessoa que a inicia. Quando feita pela patroa, os motivos mais corriqueiros são a loura de saia curta na mesa ao lado no restaurante, a morena de biquíni deitada à sua frente na praia ou a ruiva gritando descontroladamente na rua que está grávida do seu parceiro. Já no caso do mozão, o pontapé para a DR costuma ser principalmente por conta do primo distante que vem passar o feriado na casa do casal e dorme na mesma cama que eles, a mensagem que ela recebeu no meio da madrugada do colega de trabalho e o negão pelado com o corpo coberto de chantili debaixo da cama.
A terapeuta especialista em relacionamentos e conselheira matrimonial Soraia Albuquerque publicou recentemente em parceria com seu sétimo marido um estudo profundo e elogiado sobre a DR. Mesmo concordando que as motivações iniciais sejam sempre por assuntos menores, ela sustenta que o combustível de qualquer DR é sempre a insegurança. Não importa como ela começou. Somente a insegurança é capaz de fazer a DR durar tanto tempo quanto o necessário para encontrar um gato escondido numa foto compartilhada no Facebook. O diferencial da DR em relação à foto compartilhada é que não existe a opção de mandar mensagem para um conhecido perguntando qual a solução. Sendo assim, ela pode durar uma eternidade, trazendo desgaste para a relação, cansando os dois e enchendo de formigas o negão coberto de chantili que permanece constrangido debaixo da cama.
No mundo animal, diversas espécies já nascem meio que programadas para funcionalidades essenciais à vida delas. Caçar, escolher um local seguro para dormir, se reproduzir, cuidar da prole e propagar a espécie, são algumas das várias, digamos, configurações de fábrica que encontramos no meio selvagem. Com a humanidade, poderia ser igual, mas a evolução estragou tudo. Hoje, as crianças já nascem sabendo mexer em um tablet, dependentes de ritalina e ansiosas pelas próximas temporadas da Galinha Pintadinha. Nada que seja necessário está inserido em nosso código genético. Não suficiente, somos naturalmente predispostos a problematizar a fala alheia, compartilhar notícias falsas e desenvolver uma boa DR. Sim, sinto-lhes em dizer, mas a DR corre em nosso sangue e somos programados para tal.
Lá estavam o Jonas e a Catarina sentados em um banco. Ao seu redor, toda movimentação que uma manhã de segunda-feira exige. Uns para lá, outros para cá. Alguns apenas andando, a maioria na correria mesmo. O glacial silêncio entre os dois era violentado pela poluição sonora do ambiente. Falatório, gritos, coisas caindo no chão, barulhos metálicos e estampidos secos. Os dois estavam calados há mais de dez minutos. Apesar de muito próximos um do outro, eles não se encostavam. Existia uma discreta distância entre eles. Para Jonas, aquela ínfima distância era quase um abismo. O esporro ao seu redor era bem menos incômodo que o silêncio entre ele e a Catarina. Jonas não estava confortável com aquilo e, mesmo assim, o exterior não lhe torturava tanto quanto o que lhe remoía por dentro. Ele precisava falar e o fez:
- Isto não está legal, Catarina. Algo está acontecendo e não estou me sentindo bem com isso. Precisamos conversar e precisa ser agora. Você não fala comigo. O que está acontecendo?
- Estou vendo isso tudo aqui. Olha só que bagunça.
- Catarina, não é diss...
- Ih, caiu! Tadinha. Se esborrachou toda.
- Catarina, tenha paciência. Estou falando sério com você. Por que não fala comigo?
- Estou falando, Jonas. Não estou?
- Agora! Agora você está! Apenas porque perguntei o que estava acontecendo.
- Ah, eu estava distraída com essa bagunça divertida ao nosso redor.
- Então me diga com sinceridade, por que não está falando comigo desde a sexta-feira passada?
- Porque foi a última vez que nos vimos.
- EXATO! Exatamente, Catarina! Tivemos todo um final de semana e sequer nos vimos. Por que disso?
- Porque não foi possível.
- Não foi possível? Essa é a sua resposta? E que tal dar apenas um telefonema? Ou mandar uma mensagem pelo celular? Que tal?
- Jonas, eu só tenho cinco anos. O único telefone que sei manusear é de brinquedo, o console é o rosto de um palhaço e a qualquer comando que eu faça, aparentemente, é sempre o Papai Noel quem atende.
- Você poderia se esforçar. Você poderia tentar. Isso faria com que me sentisse mais importante.
- Jonas, nós só podemos nos encontrar aqui no colégio.
- E mesmo assim por rápidos quinze minutos.
- É que somos de turmas diferentes. Realmente, só é possível me encontrar com você no recreio.
- Pois é... E, curiosamente, quando tem esse tempo disponível, você desperdiça.
- Do que está falando agora, Jonas?
- De hoje. DE HOJE! DE HOJE, CATARINA! Passamos o final de semana inteiro sem nos ver e, ao invés de fazer uma refeição comigo, você preferiu suas amigas. Foi lá do outro lado do pátio ter uma refeição com as amiguinhas e me deixou só por aqui.
- Refeição, Jonas? Uma caixinha de Toddynho e um bolinho Ana Maria é uma refeição agora, Jonas? A tal da minha refeição, como você prefere chamar, durou três minutos apenas e agora aqui estou.
- Três minutos? Três minutos uma pinoia. E por mais que fossem apenas três minutos. Você sabe quanto equivale três minutos em um recreio de quinze minutos?
- Não, não sei. Provavelmente só saberei daqui a seis anos quando aprender razão, proporção ou porcentagem.
- É muita coisa, Catarina. Muita coisa. Você me privou de muito tempo do recreio quando poderíamos estar curtindo juntos.
- Curtindo? Jonas, estou há sete minutos do seu lado. Nos quatro primeiros minutos, você ficou calado com cara de paisagem. Nos minutos restantes, você desandou a lamentar das coisas. E ainda quer reclamar que preferi minhas amigas. Até o bolinho Ana Maria é melhor companhia que você, mesmo sendo seco e sem recheio, contradizendo a imagem da embalagem.
- Você está insinuando que sou chato?
- Não, estou afirmando que você está sendo muito chato. Chato de galochas.
- Desculpe-me, Catarina. Estou em um período ruim e isso afeta a minha auto-estima. Não imaginava que o Jardim de Infância fosse tanta pressão. É muita responsabilidade e acho que não estou preparado. Dividir os brinquedos com os amiguinhos é muito difícil para mim. Ainda mais porque sou filho único e, antes de entrar para a escola, passava o dia todo com a vovó. Por azar, ainda caí na turma da Tia Lenita. Ela é muito rigorosa. Seus padrões de exigências para a arrumação da sala beiram o autoritarismo. Queria ficar na turma da Tia Amélia. Ela é mais fofa e deixa os alunos brincarem com blocos e carrinhos ao mesmo tempo. Sabe, Catarina, essas cobranças mexem com a segurança das pessoas. Semana passada, me deparei em dúvida sobre qual cor utilizar para melhorar o meu desenho. Veja que absurdo, Catarina. Eu não sabia qual a melhor cor para o meu desenho. O desenho era um coelho. Você percebe o meu drama? Estou em um nível de estresse que sequer consegui lembrar que um coelhinho é branco. Claro que ficaria mais fácil me concentrar se o desenho do meu coelhinho parecesse de fato com um e não alguns traços que formavam um monte de feno. Só que isso não importa. Estou estressado, com a auto-estima abalada e qualquer coisa me incomoda. Você tem ideia do quanto é desesperador chegar aos cinco anos de idade neste estado? É muito frustrante e desgastante. E a tendência é piorar. Meu estado de inquietação é tamanho que não consigo mais pregar os olhos na sonequinha da tarde. Fico acordado andando pela sala entre os colchonetes pensando nos meus problemas. Eu não sei mais. Perdi a segurança que antes me tornava diferente dos meninos da minha idade. Estou confuso sobre tudo. Acho que nos precipitamos, Catarina. Talvez isso seja mesmo um enorme erro.
- Isso o que, Jonas? Do que está falando? Tudo que fiz foi, em um recreio, te ajudar a amarrar o seu tênis. E desde então você não larga do meu lado.
- Mas isso foi mágico, Catarina. Foi um momento inesquecível para mim. Eu sabia que você era a pessoa certa.
- Jonas, você está me assustando. Eu vou voltar para as minhas amigas, tá? Nos falamos qualquer dia desses.
- Não faça isso, Catarina. Não me deixe. Dizer que nos precipitamos e que foi um erro era apenas um blefe. Estava esperando a sua reação. Eu não sei como viver sem você. Catarina, você não entende que é a minha alma gêmea. CATARINA! CATARINA! EU VOU PULAR DO ALTO DO ESCORREGADOR!

Próximo conto da coleção: Barbearia à moda antiga