domingo, 27 de novembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: DR
Barbearia à moda antiga
Douglas sempre foi uma pessoa desinteressada com modismos, alienado caberia como um melhor adjetivo. Caso este conto seja publicado em algum livro famoso, é bem possível que ele não tome conhecimento e, por isso, não possa concordar comigo. Ao menos estará confirmando a minha teoria. Sabe-se lá como, um dia ele tomou conhecimento da febre das barbearias retrô. Novos salões de cabeleireiros montados com altíssimos investimentos, design moderno e ambientação estereotipada em uma estética viril, tudo com a desculpa para cobrar uma fortuna por algo que qualquer outro salão faria, mas que seu cliente em potencial teria vergonha de frequentar para não afetar sua masculinidade. Um cenário que gasta toda a criatividade dos seus gestores, deixando claro que nada restou de novo e, portanto, o produto final do estabelecimento será limitado a três modelos apenas. Muito cabelo com gel em uma parte e máquina zero em outra te deixando parecido com um jogador de futebol da geração atual. Barba cheia para te dar um ar de lenhador autêntico, a não ser que se lembre que não existe a possibilidade de um lenhador autêntico que more no meio da floresta tenha uma barba tão bem desenhada usando apenas um machado ou facão. Rabicó tímido ao topo da cabeça que preferem chamar de futuro coque samurai, quando deveria ser conhecido como Xuxa nos tempos áureos. Ao menos, para justificar o preço exorbitante, oferecem um chope de cortesia acompanhado de uma fina crosta de cabelos sobre ele. Menos pior que os cabelos serão seus mesmo.
Quando explicaram ao Douglas do que se tratava, foram breves. No seu entendimento, na essência tratava-se de um salão à moda antiga. Para ele, isso soaria como música para seus ouvidos. Perto de sua casa tinha um salão classificado como “de antigamente” e o preço era compatível com seu orçamento. Sem relutar, Douglas foi dar um tapa no visual no Salão do Licínio, tradição entre taxistas de Rocha Miranda. Sua entrada, com portas de alumínio com vidro, permitia que os pedestres vissem seu interior. Chão de pastilhas pequenas azuis, parede com madeira na metade de baixo e tinta azul na parte restante ocupavam um lado do curto e estreito salão, enquanto uma bancada de madeira e um longo espelho preenchiam o outro lado. Ao fundo, na parede restante, recortes de jornais a forravam com notícias de importância duvidosa em papéis amarelados.
Ao entrar no salão, Douglas notou que à sua direita, na parte do balcão com espelho, tinha três poltronas para atendimento e apenas um homem de pé entre elas. Era um homem aparentando seus sessenta e muitos anos. Bigodes bem grisalhos, cabelos nem tanto. Vestia um jaleco que um dia foi totalmente branco. Ele, ocupado organizando a sua bancada, não percebeu a entrada de Douglas. Não querendo interromper o homem, Douglas virou-se para sua esquerda. Um comprido banco de couro preto desgastado e sem encosto ocupava o outro lado. Nele, dois senhores estava sentados entre revistas e jornais espalhados. Um senhor mulato de enorme bigode negro e grosso que lia uma parte do jornal também sequer notou a presença de Douglas. O outro, totalmente careca, com pintas negras em seu couro cabeludo indicando uma longa vida de exposição ao sol, portanto careca há bastante tempo, que se ocupava com uma revista de palavras-cruzadas levantou o rosto para ver quem entrava ao recinto. Douglas então perguntou a ele se estava esperando para ser atendido.
- Esperando para ser atendido? – perguntou o senhor careca. – Só se for para o Licínio pegar esses cabelos no chão e colar na minha cabeça. Você ouviu essa, Licínio?
O barbeiro não respondeu, sequer se virou. Douglas ficou parado sem graça esperando alguma reação dos outros dois homens no salão. Nada aconteceu. Decidiu então se sentar. Enquanto se aproximava do banco e começava a se abaixar, o homem careca o interrompeu.
- CUIDADO!
- O que? – Douglas se assustou, voltou à posição totalmente ereta e deu um passo atrás.
- Cuidado... tratamento... com onze letras – prosseguiu o homem careca.
- Perdão? – Douglas permanecia sem entender o que acontecia e antes que o senhor careca o respondesse, o senhor mulato interviu sem tirar os olhos do jornal.
- Facilita para o menino, Raul.
- Onze letras. Começa e termina com a letra a.
- Não é disso que estou falando, Raul – o senhor mulato indicou impaciência ao virar o rosto para o senhor careca. – Facilita para ele que está perdido.
- Ah, sim – disse o senhor careca chamado Raul. – Pode-se sentar. Eu não vou ser atendido.
- Entendi. Obrigado – Douglas agradeceu ao Raul e depois se dirigiu ao senhor mulato. – Está esperando?
- Não – o senhor mulato fez uma pausa e depois prosseguiu. – Assistência.
- O senhor presta assistência aqui? – Douglas perguntou.
- Não, rapaz. É com ele que falo – o senhor mulato apontou para o Raul ao seu lado. – Raul, cuidado e tratamento com onze letras é assistência.
Com um sorriso no rosto, Raul agradeceu ao senhor mulato e escreveu a palavra com um sorriso no rosto. Já o senhor mulato retomou sua atenção ao jornal. Douglas ficou esperando alguma movimentação por parte do Licínio que, apenas uns dois minutos depois, parou de mexer em sua bancada e se virou para o rapaz. Sem dizer uma palavra, ele ajeitou uma das poltronas, bateu com um pano nela e encarou o Douglas como quem o convida para se sentar. O rapaz então se levantou e, a caminho da poltrona, escuta a voz do senhor mulato.
- Você conhece o Raposão?
- Quem? – Douglas perguntou antes que fosse interrompido pelo Licínio.
- Ninguém conhece o Raposão, Albeci. Você vive inventando personagens.
- Não é invenção – disse o o senhor mulato que atendia por Albeci. – Ele era o dono de uma loja de ferramentas ali na Silveira Martins.
- Não existe loja de ferramentas na Silveira Martins, Albeci – Licínio retrucou.
- Claro que existia – o Albeci persistiu. – Esqueci o nome dela. Era... Era... Era...
- Ato de desespero – falou o Raul.
- Qual loja de ferramentas se chamaria ato de desespero, Raul? – Licínio perguntou.
- Não – prosseguiu o Raul. – Ato de desespero com oito letras.
- Então – Albeci cortou o Raul. – Vocês falam que não existia loja, nem Raposão, mas deixem-me contar o que...
- Suicídio – Douglas falou.
- Viram? – Albeci apontou para o rapaz. – Não disse que ele, o Raposão, existia e alguém o conhecia? O homem não aguentou a crise e se matou. Tomou uma caixa inteira...
- Desculpe, – Douglas interrompeu o Albeci – estava respondendo ao que ele perguntou. Ato de desespero com oito letras.
O silêncio tomou o salão. Licínio cobriu o peito de Douglas com um enorme avental de fechar na nuca. Depois abriu uma gaveta para pegar tesouras e um pente. Daí, Albeci voltou a falar:
- Então, ele tomou uma caixa inteira de chumbinho. Foi encontrado praticamente cinza. Parecia uma árvore velha.
- Como você quer, rapaz? – Licínio se direcionou secamente ao rapaz fazendo com que Albeci se calasse.
- Pode tirar um pouco de volume, mas não muita coisa. É para poder continuar jogando para o lado.
- Prossiga – disse o Licínio.
- Como dizia, foi suicídio – Albeci seguiu sua fala. – É muita coragem mesmo. Precisa de muita coragem para poder...
- Albeci, eu não falei com você. Deixe o menino acabar de falar, por favor. Preciso saber como ele quer o corte. – Licínio cortou Albeci mais uma vez.
- Até parece, Lícinio – Albeci retomou a palavra. – Você só sabe fazer o mesmo corte, desde a época que serviu o exército e pegou aquela mamata de barbeiro do batalhão para não precisar ir para a guerra.
- Não me difame na frente de um cliente novo, Albeci. Eu não admito.
- Ele tem razão – Raul deu razão ao Albeci. – Tem anos que frequento esse salão e nunca vi um corte diferente. Por isso que só venho pelo social. Caso nunca tenha reparado, em todos esses anos, nunca cortei o cabelo com você.
- Claro que não – Licínio retrucou. – Você já era careca quando começou a frequentar o meu salão. Aliás, você nasceu careca como qualquer bebê, mas duvido se em algum momento deixou de ser careca.
Douglas sentado na cadeira estava desconfortável. Não sabia se eram amigos implicando entre si ou se discutiam de verdade. Tampouco conseguia decodificar se os comentários feitos eram uma dica para ele pular fora antes que fosse tarde demais. Ele demorou a se decidir, titubeou e, por mais que quisesse ir embora, Licínio deu-lhe uma tesourada em seu vasto topete.
- Acredite em mim, rapaz – o barbeiro lhe disse com voz firme. – São anos de experiência. Nunca ouvi uma reclamação.
Sem reação e percebendo que talvez fosse tarde demais, só restou ao Douglas aguardar pelo estrago final. Ao menos, o silêncio retornou ao salão permitindo que ecoasse o som do tique tique da tesoura em seus cabelos. Não querendo parecer preocupado e, ao mesmo tempo, tentando colaborar com o tal barbeiro de dotes questionáveis, Douglas ficou de cabeça baixa olhando de canto de olho tudo pelo espelho. Via os movimento nada discretos do Licínio. Notava também, por cima de um dos seus ombros, a concentração de Raul com sua revista de passatempo. Por cima do outro ombro, percebia a insatisfação de Albeci a cada linha lida no jornal. Sua cabeça balançava negativamente. Em algum momento, a insatisfação chegou a um limite que o fez quebrar o silêncio.
- Relator da CPI entrega seu parecer. – disse o Albeci. – É tudo ladrão!
- O relator disse isso? Que coragem! – Licínio exclamou.
- Não! Claro que ele não disse isso. Eu estava apenas lendo o jornal... – Albeci foi interrompido pelo Raul.
- Aporrinhação!
- Olha só, Raul – Albeci demonstrou impaciência. – Não quer falar de política, vai dar uma volta. Vai beber no boteco com aqueles pinguços que só falam de futebol.
- Mas então estava escrito no jornal que só tinha ladrão? – Licínio perguntou. – Não é muita ousadia do editor?
- Não, né, Licínio? – Albeci demonstrou impaciência com o barbeiro. – Você acha que algum jornal escreveria algo do tipo? É óbvio que foi um comentário complementar meu. Você não consegue prestar atenção na conversa e...
- Por falar em prestar atenção – foi a vez do Raul cortar a conversa. – Aporrinhação com nove letras.
- Empadinha – disse uma voz que entrou no salão.
- Empadinha? – Douglas perguntou em voz alta sem notar a entrada do homem. – Qual a relação de aporrinhação com empadinha?
- Não tem – Licínio respondeu secamente.
- Empadinha quentinha – prosseguiu o homem que segurava uma caixa de isopor. – Empadinha de carne, de queijo, de presunto, de camarão...
- Empadinha de camarão é uma boa – Albeci interrompeu o homem.
- Vai querer uma, Albeci?
- Não – ele respondeu. – Queria dizer para o garoto que a sua empadinha de camarão pode ser uma boa justificativa para associar com aporrinhação. Afinal, achar o camarão aí no meio de monte de massa seca é tarefa árdua. Veja aí se não cabe empadinha, Raul. Faz todo sentido.
- Não – Raul respondeu alheio com os olho fixados na revista. – A palavra termina com a letra o.
- Poxa vida – Albeci lamentou com ar de deboche. – E saber que a resposta poderia estar bem aqui, não é mesmo, Valtenir?
- Muito engraçadinho – respondeu o homem das empadas que se chamava Valtenir. – Sabe que você pode ter razão? A resposta pode estar entre nós como falou. Aliás, pode estar bem na sua cara. Pense bem, Albeci. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o. Só pode ser casamento.
- Não entendi onde quer chegar, Valtenir. Não faz sentido.
- Não faz sentido mesmo – Raul prosseguiu.
- Obrigado, Raul.
- Digo que não faz sentido como resposta para a revista. É óbvio que o que o Valtenir disse faz sentido. Seu casamento é um porre, Albeci.
- Até você, Raul? Como se o seu fosse uma maravilha.
- Mas o meu é!
- Aham – Albeci ironizou a resposta do Raul. – Se fosse uma maravilha, não passaria o dia todo aqui.
- É mesmo, Raul – Licínio seguiu com a temática enquanto cortava os cabelos de Douglas. – Por que fica tanto tempo aqui? Você não corta os cabelos, não faz a barba, sequer lê o meu jornal. Fica sempre com essas revistas que traz de casa. O que tem em casa que te faz preferir ficar aqui.
- Chateação – respondeu o Douglas.
- Respeito, garoto – Raul foi enfático. – Você é novo aqui! Não vai se sentar na janela, não.
- Não, senhor – Douglas apaziguou. – Digo da sua revista. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o. Chateação.
- Opa! Obrigado, garoto – Raul agradeceu.
- Chateação – Licínio exclamou em voz alta com um sorriso de canto de boca. – Chateação é tudo que eu tenho aqui com vocês dois.
- Mentira – discordou o Albeci. – É exatamente o que não tem conosco aqui.
A coisa prosseguiu nesse ritmo até o Douglas ir embora. O corte até que não ficou tão ruim. Muito pelo contrário. Tanto que foi elogiado pelos colegas que perguntaram onde ele tinha feito. Ele respondeu que em uma barbearia à moda antiga perto da sua casa. Um de seus amigos tentou corrigir o Douglas dizendo barbearia retrô. Foi aí que Douglas afirmou que eram coisas distintas. E, quando perguntado qual a diferença, ele até tentou descrever com detalhes. Acabou desistindo e resumiu dizendo que era algo como uma experiência assistida com terceiros para avaliar sua sanidade mental. Os amigos se assustaram perguntando se era tão traumático assim.
- Sim, é – Douglas respondeu concordando e prosseguiu. – Só que, depois que você entende o funcionamento, você quer voltar todo dia. Mesmo que seja totalmente careca.


Próximo conto da coleção: Amiga de verdade