Conto anterior da coleção: Uma história com conteúdo
Tráfico de órgãos
Passei uma boa parte da minha vida
quando jovem estudando no turno da manhã. Talvez isso explique a minha ojeriza
por acordar cedo. Morava perto da minha escola, portanto, bastava me levantar
com meia hora de antecedência que chegaria sem atraso. O problema era que, pela
manhã, meu funcionamento era em um ritmo decadente. Tamanha era a minha lerdeza
ao acordar que, para conseguir tomar banho, me arrumar, comer algo e chegar à
escola no horário, exigia um esforço sobre-humano. Ainda assim, precisava
acordar com pouco mais de uma hora de antecedência do início da primeira aula.
Todo dia era a mesma coisa. Lá estava
eu me arrastando pela rua desejando que um avião caísse sobre a minha cabeça e
me poupasse daquele martírio. Era um sofrimento diário sem fim. Apesar de
constante e repetitiva, a agonia tinha sempre um ápice ao passar por uma
pequena praça. O cenário era sempre o mesmo. Raros carros nas ruas, um silêncio
capaz de se ouvir o semáforo mudando de cor, um sol surgindo com tanta má vontade
quanto eu e um grupo de idosos sentados ao redor de uma mesa de concreto.
Olhá-los por lá tão cedo quando podiam estar em suas camas quentinhas me causava um ódio bíblico. A minha ira com aquilo chegou a um ponto de assumir o
controle do meu bom senso e, assim, fazer com que tomasse medidas nada
simpáticas aos olhos da sociedade.
Certa manhã, fiz um esforço maior que
o habitual e me aprontei em uma velocidade impressionante. Com passos
apressados, rapidamente cheguei à pequena praça. Estava disposto a gastar os
minutos de folga que obtive com a minha rapidez dando um verdadeiro sermão
naqueles idosos que esfregavam toda a sua desocupação e desrespeito ao sono
alheio nas nossas caras. Contudo, ao me aproximar, não pude evitar ouvir a
conversa deles. Assustado, fingi amarrar os sapatos e por lá fiquei ouvindo o
restante da conversa. Tudo que aqui reproduzirei foi escutado naquele dia. Isto
será uma denúncia. E, como toda denúncia, precisarei fazer rapidamente, pois
minha vida corre risco de morte.
A primeira coisa que vocês precisam
ter em mente para que possam absorver de maneira imparcial o que direi é que
aquelas pessoas não são velhinhos fofinhos. Não! Eles são parte de uma coisa
muito maior. São como soldados, peões ou formigas. São os braços atuantes da
maior rede de tráfico de órgãos do mundo. Explicarei detalhe por detalhe, é
preciso então que estejam sentados, pois é assustador.
Começarei explicando a cena deles
reunidos pelas manhãs. Ali, o carteado, o xadrez ou até mesmo o palitinho, é
apenas uma grande encenação disfarçando o que de fato está acontecendo. Eles
estão se reunindo para programar as ações do dia. Nada como um encontro de
criminosos em local público. Ninguém levantaria suspeita disso. Não bastante,
os encontros acontecem cedo demais. Horário que poucas testemunhas perceberão o
imbróglio a se desenrolar naquelas mesas de concreto. E, quando há testemunhas,
são alunos assonados, dispersos, em modo automático, incapazes de notar qualquer
coisa, mesmo se um dinossauro em chamas sobre um monociclo passasse à sua
frente. Este é o cenário e o momento perfeito para uma reunião de criminosos
que estão tramando o próximo passo. Esqueçam Tarantino e seus Cães de Aluguel
reunidos em uma cafeteria. O local onde realmente se planeja todo crime é
sempre numa praça com mesas de concretos, idosos ao seu redor e alguns pombos
por eles alimentados para afugentar pessoas cruzando o caminho.
Depois de feitas as reuniões, eles
partem em disparadas para o local de escolha das suas vítimas. Para o sucesso
da operação, pontualidade é de extrema importância. E somente por isso que fica
justificado chegarem tão cedo às portas de supermercados e agências bancárias.
Lá que a ação começa efetivamente. As pessoas costumam se iludir com parques
desertos, ruas ermas e estacionamentos com pouca luminosidade. Tudo porque produziram
muitos Jogos Mortais. Mais uma vez a genialidade da coisa reside na escolha do
local. Uma movimentada agência bancária nos primeiros dias úteis do mês e
supermercados apinhados de pessoas são os melhores lugares para se escolher as
vítimas. Lá, a diversidade permite uma escolha acertada. Não é um jogo de
acaso. “Ora, aquela mocinha está caminhando só por aquela rua deserta, vai ser
ela.” Nada disso! Quanto mais pessoas no mesmo ambiente, maiores as chances de
se achar a vítima perfeita. Não se esqueçam de que estou falando de um grande e
complexo sistema de tráfico de órgãos. Ninguém vai comprar o fígado de um
alcoólatra só porque era o único dando sopa numa madruga de domingo para
segunda-feira no centro da cidade.
O brilhantismo da operação transcende
a escolha do local das reuniões e o ponto de escolha das vítimas. Ele vai muito
além. Sem saber do que se trata, a futura vítima é entrevistada por um dos seus
algozes. Tudo começa com um espirro, uma tosse ou uma leve mão levada ao peito.
A vovó criminosa brinca comentando ao vento sobre a sua fragilidade na
esperança que alguém solidário entre na conversa. Pronto, o primeiro candidato
à vitima está sendo entrevistado. Começa com aquele papo barato sobre saúde em
que a vítima vai contando seu histórico médico naturalmente para a
entrevistadora. Conforme as informações são coletadas, a pessoa vai se
confirmando como uma boa vítima ou recebe a benção da negativa da organização.
Gota, problemas gástricos e sedentarismo não costumam eliminar o candidato. O
descarte só ocorre para diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e adeptos da
culinária da Bela Gil.
Por conta da velocidade que as
informações são trocadas e a necessidade de uma avaliação profissional, não é o
idoso quem sacramenta se a pessoa será escolhida ou não. Sim, existe uma
central de prontidão ouvindo cada conversa e avaliando ao vivo os candidatos. O
microfone que capta as conversas normalmente está naqueles pequenos broches com
santinhas. Afinal, quem desconfiaria de uma senhorinha devota? Já a central se
comunica com a meliante idosa através do meio mais óbvio possível. Ou vocês
realmente acreditam que tantos velhinhos por aí são realmente surdos a ponto de
usar aparelhos?
Escolhida a vítima, a senhorinha
responsável precisa se desvencilhar dela para não chamar mais a atenção, mas ao
mesmo tempo precisa sinalizar para o próximo envolvido quem foi a pessoa
escolhida. Nessa hora que entra em ação aqueles detestáveis lenços de bolso que
todo idoso adora carregar. A idosa então finge passar no seu nariz, porém já
existe nele um líquido gosmento. Será esse líquido gosmento que marcará a
vítima. Em algum momento da despedida, ao tocar na vítima, geralmente no ombro
ou nas costas, a velhinha danada a terá marcado.
Sem saber que está com um líquido quase
invisível em suas costas, a vítima sai do estabelecimento comercial. Andando
pela rua, inevitavelmente cruzará com a que é chamada por recolhedora. As
idosas recolhedoras são facilmente identificadas numa multidão. Vestem-se
impecavelmente, usam aqueles cabelos pintados puxados para o roxo, brincos e
colares de pérolas, além de enormes óculos escuros de sua época de juventude
que hoje ditam moda. Esses óculos são cruciais. Trata-se de um equipamento
militar capaz de enxergar líquidos específicos usados por espiões. Com eles, a
elegante senhorinha recolhedora identifica sem dificuldades a vítima pela
calçada.
Assim que a vítima é identificada pela
recolhedora, inicia-se a abordagem. Com bons modos, fala contida e gestos
discretos, a velhinha pilantra se aproxima toda atrapalhada com diversas
bolsas. Lamenta-se que mais uma vez se descontrolou e acabou comprando mais do
que devia. A pobre vítima no primeiro momento não consegue ter restrições à
pessoa que lhe aborda. Afinal, é supostamente uma vovozinha fina, portanto,
acima de qualquer suspeita. Em seguida, surge mais uma vez, assim como no
momento de seleção, um apelo para o lado solidário da vítima. Se ela caiu na
primeira vez, cairá sempre. Logo, fica impossível dizer não para uma senhora
com tantas sacolas por carregar. A vítima acaba a ajudando prontamente e a
acompanha até sua residência, ou o local da sua emboscada.
Sobre o local onde a pessoa se tornará
efetivamente vítima, sinto decepcioná-los, mas não é nada do que estão
pensando. Trata-se de um simples apartamento de paredes na cor salmão, móveis
antigos de madeira maciça talhada, crucifixos no topo de cada porta, lembrancinhas
de várias viagens à Aparecida do Norte espalhadas por todos os lados, panos
bordados sobre os encostos das cadeiras e um cheiro de armário de remédios
abandonado em casa de veraneio. Adentrando à casa, antes mesmo que a vítima
coloque as sacolas no chão, a recolhedora oferece em gratidão uma fatia de
bolo. Sem dar tempo à vítima para negar, a recolhedora insiste e em seguida
entrega uma bela e robusta fatia de bolo. Mais uma vez traída pela sua
caridade, a vítima aceita e, pimba, fim de história. O bolo está batizado e a
vítima apaga. Depois disso, é aquela coisa de sempre. Bisturi, sedação, sangue,
tiram os órgãos, preenchem o corpo com jornal amassado e depois o despejam em
algum aterro sanitário.
Por fim, o complexo processo é
encerrado com transporte dos órgãos. Para que eles resistam tanto tempo em um
longo voo até os países compradores, os órgãos são mergulhados em potes de
vidro com um líquido específico para tal finalidade. O líquido é ligeiramente
grosso, gosmento e de cor puxada para um caramelo ou marrom claro. Com o pote
de vidro cheio até a boca com o tal líquido, o órgão praticamente some no seu
meio. A sofisticação da coisa mais uma vez beira à perfeição, afinal, quem
suspeitaria de uma senhoria carregando alguns potes de ambrosia em sua bolsa?
Próximo conto da coleção: DR