Conto anterior da coleção: A sorte que um dia sorrirá para nós
Matrícula
Certa vez, um amigo canadense ficou
assustado quando comentei que, mesmo pagando impostos altíssimos, preciso pagar
taxa de bombeiros, iluminação pública e conta de água. Eu sei que a comparação
é injusta, afinal o Canadá é quase uma propaganda de margarina que saiu do
controle do cenário da cozinha, espalhando-se pela sala, quartos, quintal e
tomou posse de todo o país. Como não queria chocá-lo mais ainda, sequer
mencionei que, mesmo pagando separadamente pela água, ainda assim preciso de um
filtro eficiente, ou posso morrer caso beba a água que sai da torneira.
O fato é que estamos constantemente
sendo roubados e não percebemos. Ou percebemos e somos tão bonzinhos quanto os
canadenses, com a única diferença que aqui não é um comercial de margarina.
Estamos mais para um eterno cenário de propaganda de Pick-up Offroad emprestado
para gravações de propaganda de cerveja, se possível da Nova Schin para que a
metáfora fique no mesmo nível da realidade. De qualquer forma, alguns roubos
estão tão inseridos na cultura geral que sequer mais notamos. Foi o caso de
Fabiano.
Ele abre a porta de vidro e deixa duas
meninas de aparentemente vinte anos saírem. Elas vestem calças legging que desenham seus corpos abaixo
da cintura. Detalhadamente, se é que me entendem. Fabiano, ainda parado na
porta, dá aquela checada no “indo” delas, pensa alguma besteira e finalmente
entra. Ele se aproxima do balcão, espera a jovem que está arrumando uns papéis
lhe dar atenção. Ao notar a presença dele, ela pergunta em como pode ajudá-lo:
- Vim fazer a minha inscrição na
academia.
- Ah claro – diz a menina já pegando
alguns folhetos para mostrar. – Aqui estão os horários das atividades, o
horário da casa e os serviços extras disponíveis.
- Serviços extras?
- Sim – ela responde sorridente. –
Sauna, sala de repouso, piscina.
- Puxa, que bom.
- Aqui é a melhor do bairro – afirma
enfaticamente. – Já sabe os valores?
- Ah sei – Fabiano responde pegando a
carteira. – Liguei ontem. A mensalidade é R$ 150, certo.
- Isso mesmo. Com direito a tudo.
- Posso pagar em cheque?
- Sim, sem problemas.
Fabiano então preenche o cheque. Faz
as perguntas de sempre sobre cruzar o cheque, deixar nominal, escrever algo no
verso. A menina responde tudo pacientemente. Após preenchido, ele entrega o
cheque para ela que confere:
- Perdão – ela devolve o cheque. – O
valor está errado!
- Não custa R$ 150?
- Sim – ela diz mostrando alguns
valores no folheto. – Mas você precisa pagar mais R$ 90 de matrícula. São R$
240 no total.
- Matrícula?
- Sim, matrícula.
- Mas a mensalidade não cobre tudo?
- Cobre todas as atividades, menos a
matrícula.
- E a que a matrícula me dá direito?
- A se matricular na academia.
- Preciso pagar R$ 90 para você me
falar que sou bem-vindo e o mais novo associado da academia?
- Não – ela responde gesticulando como
quem quer amenizar. – A matrícula é uma taxa para você fazer a inscrição na
academia.
- Então vou pagar R$ 90 para você
preencher meus dados em um formulário?
- Basicamente.
- Ora, não precisa – ele diz se
apoiando sobre o balcão para enxergar melhor o monitor do computador que ela
opera. – Você vai preencher um formulário em Word. Eu sei lidar com o Word.
Tenho uma ótima digitação. Olha que legal, vou poupar seus dedos. Evitaria que
pergunte oitocentas vezes como se escreve meus dois sobrenomes de origem
polonesa. Você não vai passar a vergonha de escrever o nome errado da minha
rua, pois provavelmente não sabe que desembargador é com esse e ainda
economizarei meus R$ 90.
- Ahn?
- Exato!
- Não, não pode – ela agora fala em um
tom agressivo. – Você precisa pagar a matrícula, ou não faremos a inscrição.
- Ok – diz ele com as sobrancelhas
levantadas. – Pagarei a matrícula.
- Viu? Bem mais simples.
- Mas apenas se souber me explicar o
que estou comprando com esses R$ 90.
- Comprando?
- Claro – ele abaixa as sobrancelhas.
– Existem duas situações nas quais dou espontaneamente dinheiro para terceiros.
Doação ou quando compro algo. Aqui não parece um orfanato, asilo, nem uma
instituição tocada por padres Franciscanos descalços, logo meu dinheiro está
sendo entregue para você em troca de algum bem ou serviço. Regra básica da
economia.
- Ahn?
- Compliquei, né? Posso falar com quem
consiga me convencer o que estou comprando?
A menina sai atordoada tentando
entender metade do que Fabiano falou. Ela vai para uma sala, fica por lá por
alguns minutos e volta acompanhada de um homem que aparenta ter pouco mais de
quarenta, mas se veste como um garoto de quinze, bermuda, camiseta regata e um
boné parcialmente encaixado na cabeça.
- Pois não?
- Você é o gerente?
- Pode ser – ele diz para depois se
vangloriar. – Sou o dono da academia também.
- Ok, talvez isso seja embaraçoso,
porque possivelmente você seja formado em educação física e não tenha a menor
noção do que se tratam valores, bens, serviços, mas na ausência de um gerente,
que deveria ser, em tese, um administrador, acho que você pode ajudar.
- Ahn?
- Já temos um padrão no atendimento
pelo visto, não é mesmo?
- Perdão?
- Esquece – Fabiano gesticula com as
mãos. – Estou com um problema sobre a matrícula.
- Sim, qual o problema?
- É que quando pago por algo, gosto de
saber o que vou levar. Aqui supostamente estou fazendo uma doação de R$ 90.
- Não, você está pagando pela
matrícula.
- E o que é a matrícula?
- É a sua inscrição na academia.
- E o que é a inscrição na academia?
- São seus dados salvos para nosso
controle.
- Então tenho de pagar R$ 90 para que
salvem meus dados? Você não acha que isso seria o mínimo de vocês?
- Ahn?
- Você não acha que cadastrar os meus
dados deveria ser algo que vocês fariam inerente ao pagamento de matrícula?
- Não, o pagamento da matrícula te dá
o direito de se inscrever na academia, cedendo seus dados, endereço, foto, tudo
para que tenhamos o máximo controle de quem está frequentando o mesmo ambiente
que o senhor.
- Mas isso não é um precedente básico
para abrir um negócio? Você mesmo controlar quem frequenta seu estabelecimento
é um dever seu!
- Senhor – o homem coloca a mão sobre
o balcão indicando impaciência. – Não estou entendendo aonde quer chegar.
- Bem, pelo menos agora não sou o
único a não entender algo por aqui – Fabiano diz colocando a mão sobre o balcão
indicando deboche. – Eu só quero saber pelo quê estou pagando R$ 90, porque
pagar essa quantia para que você apenas escreva meus dados em um papel é um
despautério!
- Senhor, em concursos públicos se
paga matrícula também para preencher seus dados e ninguém reclama.
- Não – Fabiano coloca as mãos na
cabeça. – Em concurso público pagamos a matrícula para ter o direito a fazer a
prova e disputar uma das vagas. A coleta dos dados é feita pela instituição,
sem taxas, para controlar quem vai fazer a prova.
- Ok – o homem retira a mão do balcão
e se afasta um pouco. – Foi um exemplo ruim.
- Péssimo!
- Que seja!
Os dois homens ficam calados se
entreolhando. A menina, ao fundo, continua sem entender muito. Ou pelo menos
achando que o futuro cliente é um louco.
- Vamos fazer o seguinte – Fabiano se
aproxima pacificamente do balcão. – Pagarei apenas a mensalidade e não precisa
fazer o meu cadastro, ok?
- Senhor, se não pagar a matrícula,
não poderá frequentar a academia.
- Somente pagando a matrícula posso
frequentar a academia?
- Exato.
- Ok – ele finge estar convencido para
em seguida contra propor. – Pagarei APENAS a matrícula então, pois ela me dá
direito a usar a academia.
- Não, senhor – o homem fala com as
mãos na cintura. – A mensalidade que dá o direito à academia, logo precisa ser
paga.
- Então a matrícula e a mensalidade
dão direito à academia?
- Não, apenas a mensalidade.
- Então não pago a matrícula!
- Daí não poderá frequentar a
academia.
- Senhor – Fabiano fala enquanto
aproxima lentamente o rosto do balcão -, você tem ideia do que é um paradoxo?
- Como o senhor mesmo fez questão de
falar, sou professor de educação física e nada sei de economia.
- Ahn?
Diz a lenda que eles ficaram nesse
diálogo por quase três horas, até que Fabiano se cansou e foi embora sem se
inscrever na academia. O dono e a menina ficaram fazendo piadas sobre o pobre
homem burro que não conseguia entender o que era uma matrícula. Fabiano
desistiu da carreira de advogado e abriu uma consultoria para pessoas
reivindicarem o pagamento de matrículas em academias, escolas e outros
estabelecimentos comerciais. Atualmente ele tem uma rede enorme de clientes,
conta com três funcionários na elaboração de roteiros argumentativos e fatura
mensalmente mais que o dono da academia com matrículas em um ano inteiro.
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