sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar


Conto anterior da coleção: Matrícula

Almoço e mentiras
Justiliano odiava seu nome. Para amigos, colegas de trabalho, até atendentes de central telefônica, era sempre Jota. Poucos sabiam seu real nome. Aliás, poucos sabiam sobre sua vida. Um dos que fugiam à regra era Wallace, que ele chamava gentilmente de Uólace. Não era apenas o verdadeiro nome de Jota que Wallace sabia, ele também era seu confidente para tudo, mas, principalmente, era seu álibi para suas atividades, digamos, indiscretas:
– Alô!
– Fala aí – respondeu o Wallace. - Fala, Jota!
– Seguinte, vamos almoçar hoje.
– Beleza – disse Wallace. – Que horas passa aqui?
– Não, sua besta – Jota falou pausadamente. – Va-mos al-mo-çar ho-je!
– Eu en-ten-di – respondeu Wallace. – Que ho-ras?
– Porra, Uólace! Presta atenção!
– O que foi?
– Nós vamos almoçar hoje juntos, mas você não vai! Entendeu?
– Ah, tá – finalmente Wallace entendeu e riu – Ok, captei.
– Já sabe, né? – Jota fez uma pausa. – Se te ligar, almoçamos juntos.
– Tudo bem.
– Falou então.
– Peraí – Wallace interrompeu o Jota.
– O que foi?
– Onde iremos?
– Como assim?
– Para confirmar – Wallace falou com uma voz enfadonha. – Caso contrário podemos ser pego na mentira.
– Entendi – Jota fez uma pausa dramática – Em Ipanema!
– Boa! Ipanema! Gostei!
– Beleza – disse o Jota se despedindo. – Valeu então!
– Não! – Wallace mais uma vez interrompeu a despedida.
– O que foi?
– Mas onde em Ipanema?
– Faz diferença?
– Claro que faz. Vai que você conta esse detalhe para ela e não para mim – explicou Wallace. – Um dia podemos comer novamente lá, ela comentar algo e eu ficar com cara de panaca.
– Você já tem cara de panaca, Uólace – Jota falou rindo. – Sei lá. No Francesco!
– Está louco? Lá é muito caro!
– Mas você não vai pagar coisa alguma, demente!
– Não importa – Wallace discordou. – Ela sabe que sou muquirana. Nunca pagaria uma fortuna em um almoço.
– Está bem! Na Boi Torrado então.
– A churrascaria?
– É!
– Não – respondeu Wallace. – Não mesmo!
– Ora, por quê?
– Queria comer uma massa.
– Ah, Uólace – Jota se irritou. – Você pode comer massa.
– Lá não tem massa!
– Mas você não vai comer lá, sua múmia!
– Ah, mas mesmo assim – Wallace falou com a voz elevada. – Comi carne a semana toda.
– E daí?
– Ora, e daí que só de pensar em comer mais carne fico com azia – Wallace fez uma pausa. – Desculpe, arrotei. Não disse? Preciso de massa hoje!
– Mas que coisa, Uólace – Jota se zangou. – Sério mesmo?
– Você é engraçado! Quer que eu minta e ainda passe mal? – ele ficou em silêncio por alguns segundos. – Nada disso.
– Está bom, seu fresco. Vamos na Mama Bologna!
– Ah, agora sim! Lá tem um talharim al dente sensacional!
– Com molho branco ou bolonhesa?
– Branco – respondeu o Wallace.
– Com bastante queijo ralado em cima e pedaços de cogumelos?
– Isso!
– MAS NÃO VAI COMER – gritou Jota.
– Como assim?
– NÃO VAI! ISSO É UMA MENTIRA. ESTAMOS COMBINANDO A BAITA DE UMA MENTIRA. VAMOS DIZER QUE FOMOS ALMOÇAR LÁ, MAS NA VERDADE VOCÊ VAI COMER NESSA PORCARIA DE RESTAURANTE A QUILO QUE TEM EMBAIXO DO PRÉDIO QUE TRABALHA, PORQUE É MUITO PREGUIÇOSO PARA IR ALMOÇAR LONGE.
– Ei!
– EI, NADA – interrompeu Jota que agora fala calmamente – Estamos entendidos? Fomos almoçar em Ipanema, na Mama Bologna e você pediu o maldito talharim ao molho branco. Entendido, Uólace?
– Ah, tá! Vai aprontar mesmo. Está muito estressado.
No final de semana seguinte, Jota e sua esposa passeavam pela orla quando encontraram com Wallace sentado em um quiosque. Papo vai, papo vem. Aquelas coisas de sempre. Até que a esposa de Jota convidou Wallace para acompanhá-los para almoçar. Ele topou. No caminho, ela perguntou:
– Por que não vamos naquele restaurante que vocês comeram juntos outro dia?
– O Mama Bologna? – perguntou Wallace.
– Sim – respondeu a esposa de Jota. – Ele disse que lá tem um talharim maravilhoso.
– É? – Wallace se espantou fazendo uma enorme cara de desdém ao mesmo tempo.
– Não é bom lá? – perguntou a esposa.
– Até que é – respondeu Wallace. – Mas naquele dia, seu marido, fresco toda vida, não topou a minha ideia de ir ao Boi Torrado. Sabe como ele é com carnes?
– É fresco mesmo – falou a esposa apontando para Jota que permaneceu calado.
– Insisti muito, mas ele disse que não ia de jeito algum lá.
– E você aceitou isso assim? Como ele pode te obrigar a comer em outro lugar, Wallace?
– Ah, ele prometeu que iria compensar pagando um almoço no Francesco qualquer dia desses.
– Eu disse isso? – perguntou Jota espantado.
– E tudo isso porque disse que ele é muito preguiçoso para almoçar longe do trabalho. – Wallace foi novamente contundente.
– O QUE? – o Jota se espantou novamente.
– Não fico surpresa com isso – relatou a esposa. – O Jota é tão preguiçoso que, se não tivessem inventado o controle remoto, ele ficaria sem ver televisão.
– Bem colocado – Wallace concordou rindo. – Você acredita que ele disse exatamente “você não vai pagar coisa alguma, demente”?
– Ora, que ótimo, senhor generoso – falou a esposa olhando para Jota. – Um pouco indelicado, mas generoso. Então vamos hoje, é aqui perto.
– Boa ideia – Wallace se animou. - Olha só que legal, Jota!
– Muito legal – Jota concordou debochando. – Você é a mentira mais cara que já vi!
– O que disse, Jota? – perguntou a esposa.
– Disse que o Uólace é o amigo mais caro que já tive.
E lá foram eles almoçar no Francesco. A conta passou dos trezentos. Wallace saiu bem alimentado e satisfeito por ter comido em local tão sofisticado onde jamais imaginaria ir antes. A esposa ficou contente com o belo programa de final de semana. Já Jota, bem, ele saiu algumas centenas de reais mais pobre, mas com a certeza de que mentira pode até não ter as pernas tão curtas assim, mas usa uma saia cara de seda importada para cobri-las.


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