terça-feira, 13 de março de 2012

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

A sorte que um dia sorrirá para nós
Existe uma teoria de que todo mundo, pelo menos uma vez na vida, tem um dia de sorte. O problema é conseguir prever quando isso acontecerá para investir pesado nessa chance. Por isso que entendo o meu avô ter passado anos e mais anos jogando na loteria. Esporadicamente ele fazia o prêmio mínimo, mas nunca o máximo. Vai ver seu dia de sorte aconteceu em uma data que não teve sorteio e acabou sendo direcionada em um picolé de limão premiado com outro grátis.
Aroldo nunca acreditou em sorte. Sua fé era sempre voltada para o trabalho. Tudo que recebesse de bom na vida, para ele, seria uma consequência de horas e mais horas de trabalho pela semana. Ele era um verdadeiro trabalhador. Ralava muito, ganhava pouco. Comumente, Heloisa, sua esposa, vinha contar uma notícia da vizinhança. Era a manicure que foi premiada na raspadinha, o primo que tirou um prêmio na rifa, ou o morador da casa 38 que ganhou duzentos reais no bingo. Ele ouvia aquilo tudo, esboçava um sorriso e depois já esquecia. Era perda de tempo jogar:
– Tudo bem, Heloisa. Seu Ermínio foi sorteado pelo Baú do Silvio Santos – dizia ele com tom questionador. – E quanto ganhou?
– Acho que uns quatrocentos Reais – ela respondeu.
– Ah, Heloisa – bradou ele com os braços levantados. – O homem gastou na vida mais de mil pagando aquela enganação e vai vibrar que ganhou menos da metade? Isso é bobagem!
Heloisa sabia que seria perda de tempo prolongar esse assunto. Mesmo sabendo de fato quanto Seu Ermínio gastara até o dia que foi sorteado. Não adiantava. Ele não acreditava em sorte. Achava que era desperdício de dinheiro. E, mesmo com toda falta de estudo, ele dizia que investir dinheiro em jogatina trazia muita ansiedade para as pessoas, quase as obrigando a fazer planos com um prêmio que ainda não tinha. Sua rotina por muitos anos era segurar as contas até o dia que recebia seu salário, levá-las, então, de uma só vez e pagar no banco com dinheiro contado. Raramente sobrava dinheiro para uma estripulia. Imagine para gastar em jogatina. Pois é, ele pensava exatamente nisso quando via o saldo final da conta.
Depois que as casas de loteria passaram as aceitar pagamento de contas, ele nunca mais foi ao banco. Era muita fila e muita demora. Para ele, tempo parado, era dinheiro perdido. E era mesmo, ainda mais quando se tratava de um chamado faz-tudo que ganhava por serviço prestado. A rotina permanecia a mesma. Juntava as contas, recebia o dinheiro e, agora, ia para a lotérica. E toda vez ficava olhando os anúncios de jogos oficiais e não oficiais. Sabe como é, né? Bairro de periferia pobre, todo mundo dá tiro para todos os lados. É banca de jornal que vende pão, é salão de beleza que vende roupa de praia e, claro, loteria que vende rifa, cartelas de programas de TV e por aí vai. Apesar de ser bem mais vazia que os bancos, a lotérica tinha uma pequena fila. E, enquanto esperava, Aroldo se deliciava com os anúncios dos jogos, digamos, alternativos. O cartaz anunciava: “Ganhe uma cesta completa de café-da-manhã. Rifa por R$ 0,50”. Aroldo logo começava a fazer contas em voz alta:
- Uma cesta desta deve custar no máximo uns sessenta Reais, então o cara precisa vender 120 rifas. Levando em conta o preço baixo, cada pessoa deve comprar umas quatro de cada vez. É, isso deve dar um dinheiro bom!
 Só que o Aroldo sabia não tinha dinheiro para iniciar uma empreitada deste tipo. Restava-lhe apenas aguardar o próximo mês para ver qual seria a próxima rifa. No mês seguinte, lá estava ele. Parado na fila, contas na mão, dinheiro contado no bolso e olhos no mural do anúncio: “Vencedor da cesta de café-da-manhã: número 195”. Ele logo disse consigo:
- Meu deus, ele vendeu, no mínimo, 195 rifas. São duzentos e setenta... Não! Duzentos e noventa reais! Tirando os sessenta, o cara ganhou duzentos e trinta. Esse, sim, é o sortudo!
Logo abaixo do cartaz que anunciava o vencedor já tinha a propaganda de outra rifa. Agora, uma câmera digital. Preço da aposta, R$ 2,00. Ele começou a fazer as contas e novamente viu que é um bom negócio investir em jogos, mas nunca como jogador. Não se empolgou, pagou suas contas e foi embora. Mês após mês era a mesma coisa. Rifas, prêmios e sorteados. E Aroldo? Aroldo sempre resistindo. Da câmera digital, foi para um notebook, que depois virou uma televisão de LCD, passando para uma moto e, em seguida, um carro zero. O dia quinze de agosto de 2011 foi uma data importante na sua vida. Aroldo não aguentava mais trabalhar tanto e ganhar pouco. Também não suportava ver todo mês alguém da vizinhança ganhar algo. Muito menos, mesmo sem maldade, isso ser anunciado pela sua esposa. Naquele dia, na fila, ele viu o anúncio que era mais do que tentador. O prêmio: duas pick-ups. O preço: R$ 15,00. Ele sentiu que se existia um dia de sorte, aquele seria o seu. Guardou as contas em um bolso e tirou o dinheiro do outro. Gastou tudo na rifa. Comprou vários bilhetes. Era tanta a certeza, que já saiu fazendo as contas de quanto ganharia vendendo a primeira pick-up, o que iria fazer com o dinheiro e, assim, sobraria dinheiro para poder continuar com a segunda pick-up.
Chegando a casa mais tarde, Aroldo nada contou à Heloisa. Foi dormir refazendo as contas e os planos. Foram alguns dias neste estado de ansiedade que ele tanto reprovara. Entretanto, no momento de certeza, tudo vai por água abaixo e nos esquecemos dos conceitos mais básicos que estipulamos, pois, desta vez, algo vai mudar.
Exato um mês depois, bem cedo pela manhã, Heloisa acordou Aroldo, toda afoita e esbaforida:
– Querido, acorda – falava ela, gesticulando muito com as mãos. – Tem duas caminhonetes paradas aqui na porta de casa!
– Caminhonetes? – Aroldo perguntou para depois ele mesmo responder com sorriso no rosto. – Não são caminhonetes! São pick-ups! Sabia que meu dia iria chegar!
Aroldo deu um pulo da cama, nem se importou por estar apenas de short estampado. Saiu correndo pela casa a fora até o quintal, quando se deparou com as duas pick-ups e alguns homens. Ele instantaneamente encerra o sorriso e fica parado como uma estátua enquanto um deles fala:
– Bom dia, senhor. Eu sou da companhia de água e este ao meu lado é da companhia de luz. Estamos aqui para fazer o corte do serviço por falta de pagamento.
Todo do mundo tem um dia de sorte. Aroldo ainda não descobriu o seu.

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