terça-feira, 26 de novembro de 2013

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: Invocação danada

Seu Cosme das florestas
O homem é um bicho engraçado mesmo. Vive reclamando de ir ao shopping com a namorada/esposa/peguete, um programa simples e tranquilo. Por lá, é possível caminhar em um ambiente agradavelmente refrigerado e sentar-se para descansar um pouco em um dos vários bancos. Caso sinta sede, poderá se refrescar com diversas bebidas e, ao final, ainda tem a chance de comer um delicioso hambúrguer cheio de doenças cardíacas associadas. Mas não, reclamam e reclamam. O que me incomoda nisso é que, ainda que reclamando, mesmo com todas as opções citadas, ele não se opõe nem um pouco a fazer aquela trilha bacana na floresta quando quer pegar a gatinha eco-esportiva. Na trilha, você anda como uma mula, geralmente em um calor úmido insuportável, não tem onde parar para descansar, tão pouco se aliviar. No caso de sede, contente-se com a água estupidamente quente do cantil profissional que comprou para impressionar e, ao final, vai ter de se deliciar com o saboroso sanduíche de broto de vagem que ela fez para você. Imperdível, não?
Nunca cogitaria fazer um programa desse tipo, mesmo tendo um algo a mais em jogo na parada. Nem mesmo se fosse a Carolina Dieckman. Aliás, a minha única chance de ter algo com a Carolina Dieckman no meio da floresta seria se resolvessem batizar com seu nome alguma doença provocada pela picada de um inseto tropical.
De qualquer forma, o tempo ocioso somado ao tédio no induz a ideias estúpidas. Bem, foi essa a desculpa que dei quando resolvi fazer uma caminhada sozinho na Floresta da Tijuca em uma manhã de quinta-feira. Não foi muito diferente do que descrevi, exceto por estar só e ter me perdido. Sim, mesmo com um caminho desenhado no meio da floresta, consegui sair da trilha, ir mata adentro e me perder. Pois é, pessoas com alto nível de ansiedade não conseguem seguir um caminho pré-determinado, elas precisam sair do trajeto, mas isto é papo para outra história. No meio do nada, tentando achar o caminho de volta, ouço um som familiar, um choro.  Já ouvi falar de peixes que possuem língua em formato de minhoca para atrair sua presa. Também já li sobre insetos que possuem estampas nas asas que enganam, insinuando que são menores, daí outro inseto desavisado se aproxima e, catapimba, vira janta. Mas não me lembro de ter escutado sobre animais carnívoros tijucanos capazes de imitar o choro humano para fazer uma emboscada na sua vítima. Fui lá conferir.
Era um senhor, muito velhinho, vestindo uma calça jeans surrada, uma camisa de malha branca e humildes sandálias estilo franciscanas. Estava sentado ao pé de uma árvore e chorava como uma criança, uma das mãos cobrindo o rosto e com soluços ininterruptos. Perguntei o que tinha acontecido.
- Eu fracassei – ele respondeu sem tirar a mão do rosto. – Eu fracassei, meu filho.
- Não, não fracassou – disse sem ter a menor certeza do que estava falando até perguntar. – Fracassou em quê?
- Na minha tarefa. Deu tudo errado. Fracassei na minha missão.
Admito que, quando ia à direção daquele senhor, esperava algo como ele estar perdido, ou deu uma volta para espairecer sobre a perda de um parente, ou só estava cansando de ser torcedor do Botafogo. Não estava preparado para lidar com o fracasso de um estranho. Aliás, não sou nem um pouco indicado em lidar com esse tipo de situação. Para dizer a verdade, tirando o lado humano da coisa, não sei por qual motivo perguntei em seguida de qual missão estava falando.
- Zelador – ele respondeu. – Fracassei como zelador.
Dificilmente se reflete sobre respostas em momentos como esses. O esperado é que seja ágil nos argumentos que irão confortar a pessoa em questão. Não consegui. Era mais forte do que eu e, quando me dei conta, estava tentando imaginar como um zelador pode falhar. Deixou um estranho entrar no prédio? Não atendeu o interfone antes do terceiro toque? Não socorreu o vazamento no banheiro da dona Alzira do 402? Colocou a ordem de atraso de pagamento do condomínio na caixinha do apartamento errado?
- Está tudo destruído! Nada mais será como antes – ele faz uma pausa. – Não tem volta, nem correção. Agora é tarde.
- Do que está falando? Não entendi.
- Sou o zelador da Terra, meu filho.
Olhei atentamente para as mãos dele. Não pareciam mãos de jardineiro. Não consegui entender o que significava ser zelador da terra. Estaria ele delirando? Perguntei novamente do que se tratava.
- Não, meu filho – ele olhou calmamente para mim e, apontado para tudo ao seu redor, continuou. – Sou zelador do planeta Terra.
Estava ali uma variável que não considerei ao criticar essa ideia demente de fazer trilha, encontrar um velho louco no meio da mata e ter de consolá-lo. Um senhor supostamente enviado pelo criador para cuidar do planeta estava em plena Floresta da Tijuca em uma crise existencial depressiva.
- Enviado, não – ele me corrigiu. – Fui contratado.
- Como?
- A cada geração, ele seleciona uma pessoa para cuidar do planeta. Zelar pelas riquezas e a vida passa a ser a nossa missão.
- Ele quem? O senhor está me dizendo que Deus te contratou para ser o faz-tudo do planeta?
- Sim!
- E como ele te achou? Anúncio de jornal?
- Em uma quermesse.
- E não tiveram outros candidatos? Entrevista? Dinâmica?
- Sim, éramos vinte candidatos. Apenas eu fui escolhido.
- E imagino que o seu diferencial tenha sido a mente aberta e sã.
- Também.
- Teve mais?
- Sei imitar vários pássaros.
- Ah, isso deve ajudar muito, não?
- Claro que sim. Falo com eles todos os dias.
- E eles entendem?
- Sim, me respondem sempre.
- E o senhor entende?
- Claro que não, meu jovem. Eles são pássaros! Onde já se viu entender o que um pássaro diz.
- Faz sentido – cocei os olhos como quem quer recobrar a consciência ou acreditar naquilo. – E a contratação?
- O que tem?
- É carteira assinada? Ele paga em dia?
- Não, acordo de cavalheiros.
- E acredita nisso?
- Ele é Deus, meu filho! Como não acreditar nele?
- Mas não é meio que um contrato de risco? Metas ambiciosas demais?
- Está insinuando que ele foi tendencioso?
- Não, jamais – ele tinha reagido com um tom áspero, precisei recuar. – Apenas acho pouco provável você obter sucesso nessa missão.
- Eu sei – ele concordou abaixando a cabeça. – Fui ingênuo.
- Foi otimista!
- Pode ser – ele concordou colocando a mão sobre um dos meus ombros. – Quer um trago?
- É maconha?
- Pura – disse ele esticando o cigarro suspeito para mim. - Mas cuidado, dá onda errada.
- Eu percebi. Eu percebi.

Próximo conto da coleção: Projeto Brasil YYY