Conto anterior da coleção: Seu Cosme das florestas
Projeto Brazil YYY
Meu nome é Greg Limpzk e sou o atual
comandante da Força Intergaláctica no planeta Arizla. Lembro bem quando fui
nomeado pelo primeiro ministro Kravotz III. Tudo ocorreu em uma bela cerimônia
onde minha nomeação foi feita com honras. Palavras do próprio primeiro ministro.
- Por fim, é uma enorme honra manter
cargo tão importante sob os cuidados de uma tradicional família que
seguidamente assume essa posição. Por diversos anos, a família Limpzk vem sendo
um dos principais atores na evolução das descobertas intergalácticas da
civilização Arizla. Suas contribuições são enormes, especialmente pelo
comandante anterior que acaba de nos deixar, o grande comandante Theof Limpzk,
pai de Greg Limpzk, a quem tenho a honra de nomeá-lo neste momento como
comandante da Força Intergaláctica de Arizla.
Sim, sou filho do grande Theof Limpzk,
o maior estudioso espacial da história de Arizla. Seu legado é tão grande, que
transcende apenas informações, datas e fatos interplanetários. Como herança,
ele também deixou técnicas de exploração jamais imaginadas antes. Sua
eficiência era tamanha que precisou de apenas uma viagem para concluir que não
existia coisa alguma em Vênus. Provando a eficácia de sua metodologia, ele mais
uma vez, em apenas uma viagem, conseguiu demonstrar que em Mercúrio não somente
não tinha coisa alguma, como também era quente para dedéu.
Papai sempre foi fascinado pela Via Láctea,
em especial o planeta Terra. Lembro que desde pequeno o acompanhava em suas
viagens. Foram muitas. Até o início da minha adolescência, ele me deixava
descer em solo com ele. Depois, mudou de ideia por conta das minhas
traquinagens. O que se esperava de um adolescente em um enorme planeta? Era
óbvio que aprontaria alguma coisa. Comecei fazendo desenhos enormes em
plantações de milho. Ele não se zangou com isso. Achava os desenhos bem bonitos,
inclusive. Ficou um pouco preocupado quando comecei a roubar vacas. As naves de
exploração tinham poucos espaços naquela época. Não bastante, o cheiro das
fezes impregnava com facilidade todo o nosso ambiente até então estéril. A gota
d’água foi quando comecei a abduzir humanos e colocar sondas no reto deles.
Tentei explicar que seria um novo videogame para o povo de Arizla jogar à
distância. Ele não somente odiou a proposta, como odiou também o nome do jogo
que remetia ao do seu avô, o bisa Syms.
Assim que assumi o cargo, dei
prosseguimento ao seu projeto Terra. Ele é subdivido em várias etapas. Algumas
foram concluídas e outras não. Uma das etapas previamente pesquisada à
distância foi sobre um grande país chamado Brasil. A muitos quilômetros de
distância no céu, papai coletou hábitos, características e informações sobre o
povo daquela região. Essa parte do projeto levou o nome de Brazil YKK. Em
seguida, organizou essa enorme gama de informações em uma espécie de
enciclopédia específica para orientar suas equipes. Essa segunda parte levou o
nome de Brazil YYK. Restou apenas a terceira e última parte, Brazil YYY, em que
entraria em contato direto com o povo local tentando estabelecer comunicação.
Infelizmente, papai faleceu aos 439 anos e não pode dar prosseguimento. Morreu
tão novo, vítima de uma doença adquirida naquele planeta hostil. Nem nossa medicina
avançada foi capaz de tratar o que eles chamam de virose. Uma doença vaga,
incapaz de ser diagnosticada com precisão, tratada geralmente com um mesmo
medicamento que raramente funciona e que, ao final, se revela como outra doença
completamente diferente colocando em xeque a perícia do profissional de saúde.
- Senhor, estamos nos aproximando –
disse um dos pilotos da aeronave.
- Ok – respondi para depois perguntar.
– A equipe já iniciou o processo de preparação da vestimenta?
- Eles estão quase no fim, senhor.
Contudo, acha mesmo que seja necessário?
Talvez outro comandante tivesse
interpretado como insubordinação o questionamento do piloto Droidgor. Eu não.
Entendia a insegurança dele e da minha equipe quanto às vestimentas de
exploração. Por mais confuso que isso possa parecer, elas foram desenvolvidas
após meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, assistir a uma quantidade
enorme de gravações obtidas daquele planeta. Segundo seus estudos, os
terráqueos esperam que visitantes de outros planetas vistam roupas prateadas
com uma espécie de globo de vidro ao redor de suas cabeças.
- Mas não precisamos dessa proteção,
senhor. Nós respiramos o mesmo ar que eles.
O argumento era válido tecnicamente. Contudo,
na cultura local, estar dentro do modelo de expectativa criado por diversas
gerações era uma condição básica para o sucesso da expedição. Inclusive quanto à
epiderme ser de cor esverdeada. Sem se esquecer de olhos grandes e negros.
- Senhor, nossa pele é de cor
semelhante à deles. Nossos olhos são idênticos aos deles. Essa maquiagem
obstrui nossos poros, além de irritar a vista.
- Jovem, é necessário. Confie em mim.
Mesmo contrariado, o piloto seguiu
viagem e deu a ordem para que a equipe prosseguisse com a minha determinação. Confesso
que o barulho deles se vestindo com aquelas calças e casacos feitos com papel
laminado era bem irritante. A equipe custou muito a se adaptar aos capacetes de
vidro. As falas ficaram com eco. Fora o desagradável “embaçamento” interno. O
curioso é que, na nossa língua, o termo “embaçamento”, oriundo de embaçar, não
existe. Foi preciso criar um verbete em cima da hora por conta desse evento.
- Senhor, estamos próximo. Acredito
que tem algo de estranho por lá – anunciou o piloto apontando para o monitor.
O que causava estranheza ao nosso
piloto Droidgor não era algo em tela, mas exatamente o contrário, a falta de
algo em tela. Ele apontou para a tela e exclamou pela falta de pessoas. A
imagem era de uma enorme avenida onde não se via uma pessoa sequer andando.
Estava tudo deserto e parado.
- Não se preocupe – falei acalmando o
piloto. – Provavelmente estamos sobrevoando uma área chamada de Brasília em um dia
de domingo.
Não tão tranquilo quanto imaginei que
ficaria, o piloto Droidgor seguiu viagem. Por pouco tempo durou sua parcial
inquietação. Alguns quilômetros à frente, o piloto Droidgor detectou algo que
mais uma vez lhe provocou desconforto. Desta vez, uma tela cheia. Uma imagem
preenchendo todo visor principal. Uma enorme rodovia com muitas faixas surgiu
na tela. Era impossível ver a cor do asfalto de tantos veículos. O cenário se
completava assustadoramente quando notamos que nada se movia. Estavam todos
parados. O vídeo em tela parecia uma foto.
- Foi como lhe disse, Droidgor.
Estamos em um domingo. Isso deve ser provavelmente um grupo de pessoas chamado
de paulistanos voltando do que eles chamam de feriadão, o aumentativo para
feriado.
Com as duas situações coincidindo em
uma mesma explicação, o piloto Droidgor se sentiu mais seguro. Foi possível
notar quando mudou seu semblante. As sobrancelhas levantadas ajudaram a
enfatizar sua tranquilidade, mesmo com a maquiagem verde e olhos exageradamente
negros. Contudo, conforme percorríamos o céu daquele país, o meu semblante que
mudava. Comecei a notar determinado padrão que naquele momento me causava
desconforto. As ruas em sua maioria estavam em uma miscelânea da área Brasília
com a estrada na volta do tal feriado dos tais paulistanos. Resumindo, nada de pessoas
nas ruas e veículos parados para todos os lados. Sim, indiscutivelmente algo de
estranho estava no ar. Mediante tamanha dúvida, não hesitei e ordenei que três
soldados fossem enviados à superfície para um reconhecimento local.
- Senhor, tem certeza que não é prematura
esta decisão? – perguntou o piloto Droidgor. – Não acha mais prudente um
reconhecimento prévio à distância?
O piloto Droidgor tinha razão ao
preferir seguir a cartilha padrão. Entretanto, eu não tinha dúvidas do quanto
essa ação seria segura. Jamais colocaria meus soldados em risco em uma atitude
prematura. Confirmei que a decisão estava mantida. Eles então foram projetados
por raios teletransportadores até a superfície. Ficamos, portanto, todos no
aguardo de contato deles.
- Senhor – a voz de um dos soldados no
rádio foi tranquilizadora, além de ter quebrado a gélida tensão em nossa nave.
– Tem algo de muito estranho aqui. A cidade está deserta. Não existem sequer
resquícios de vida humana. Tudo foi ou destruído, ou saqueado, ou abandonado.
Acompanhado de um frio na espinha e
gosto de sangue na boca, um temor se apoderou dos meus pensamentos. Teria eu
demorado tempo demais para reiniciar essa operação? Será que esperamos muito e
agora era tarde? É possível que esse povo tenha entrado em extinção? Se sim,
por qual motivo? Uma praga? Talvez uma doença como a que acometeu o meu pai. Ou
quem sabe uma guerra? Muitas dúvidas pairavam no ar aumentando ainda mais o meu
pavor. Pedi a equipe em solo que tentasse pesquisar por vestígios.
- Senhor, notamos que por aqui existe
uma espécie de módulo onde as pessoas podem adquirir informação. Uma tal de
banca de jornal. Talvez tenhamos pistas por lá.
Seria perda de tempo. Segundo
anotações do meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, a mídia daquela
população não era confiável. Com motivações obscuras, posicionamento parcial e
métodos questionáveis, tudo que ela fazia era manipular a grande massa em
finalidade própria. Pedi que verificassem outra fonte de informações.
- Senhor – um dos soldados me
respondeu um tempo depois. – Senhor, encontramos uma tal de biblioteca. Parece
ser muito semelhante ao que chamamos de Grande Arquivo Geral do Conhecimento.
Todavia, ela raramente era frequentada pelo povo local. A movimentação de
arquivos por aqui chega perto de zero.
- Soldado, mesmo assim ela pode ser
útil. Verifique pela quantidade de tiragens que cada exemplar possui. Um
arquivo com muitas cópias tem muita distribuição, logo é muito importante,
portanto possui conteúdo de valor.
- Senhor, levantamos os três maiores
por aqui. Um, pelo que entendi, é sobre uma fada. Sua autora se chama Kefera,
quase o nome da minha mãe Kezera. O outro é sobre a vida de um certo Felipe
Neto. Não entendi ao certo a importância de retratar a vida dele, pois não foi
político, estudioso ou alguma pessoa de valor para a prosperidade do povo
local.
- Tudo muito estranho, soldado –
comentei em voz alta mantendo contato. – E o terceiro? Do que se trata?
- É Paulo Coelho, senhor.
Ora, Paulo Coelho era um dos autores
mais vendidos do universo, inclusive no meu planeta Arizla. Todo o meu povo
conhecia seus livros. Até entendo a grande tiragem naquelas terras, mas, de
fato, não teria importância para a nossa pesquisa.
- Soldado, segundo anotações do meu
pai, o grande comandante Theof Limpzk, a maior fonte de informações fidedignas
para esse povo era as chamadas redes sociais. Elas eram as maiores formadoras
de opiniões para esse povo. Sem mencionar que nelas que aconteciam os debates
mais acalorados e, ao mesmo tempo, profundos. Solicito que tentem se conectar a
algum servidor local no intuito de fazer uma varredura por informações.
Passado um bom tempo, o soldado
retornou contato com notícias. Eram notícias nada agradáveis. O país tinha
entrado em uma guerra civil generalizada. Estados lutando entre si. Irmãos de
pátria matando uns aos outros. O povo daquele país foi dizimado. Isso era
motivo suficiente para abortar a missão de exploração daquela civilização e
voltar para o meu planeta Arizla. Contudo, não me daria por satisfeito.
Precisava entender a fundo como chegaram àquele ponto. Era necessário retornar
à Arizla com informações completas e, dentre elas, como tudo isso aconteceu era
uma delas. Pedi detalhes ao soldado que acessava a tal rede social que guiava o
povo local.
- Senhor, aparentemente, o líder deles,
o homem que levava o título de presidente, não passava muita confiança. Não sei
ao certo se o termo correto é confiança. A tradução aqui não fica muito
precisa. A ideia principal é que o tal presidente não era um grande líder, não
tinha muita aceitação, tampouco sabia comandar uma nação. Sua chegada ao poder,
parece ter sido um grande equívoco.
Acho que me recordo de algo parecido
no diário do meu pai, o grande comandante Theof Limpzk. Lembro-me da história
de uma reviravolta no poder desse povo. Algo que remetia a uma trama que sequer
os maiores escritores poderiam imaginar. Um sucessor que apoiava desde o
princípio o líder desse povo e que, em questão de pouco tempo, o derrubou e
tomou o poder. O líder, que no caso era uma mulher, foi deposto. O povo
contrariado se recusava a aceitar o que foi chamado de golpe. A governabilidade
do tal traidor tornou-se insustentável. Sim, recordo-me disso e esse fato foi
tema de diversos estudos no meu planeta Arizla quando meu pai, o grande
comandante Theof Limpzk, trouxe esse relato ao voltar de uma expedição. Dentro
da nossa cultura, é inadmissível um episódio como esse. O poder no planeta
Arizla é direto à família que assumiu o comando. Isso é passado de pai para
filho sempre. Atualmente, estamos sob o comando do primeiro ministro Kravotz
III, filho do ex-primeiro ministro Kravotz II, neto do ex-primeiro ministro
Kravotz I e bisneto do ex-primeiro ministro Krakrot IV. Somente com a morte do
primeiro ministro que seu sucessor assume. Considerando que a expectativa de
vida no planeta Arizla é de pouco mais de 900 anos, o poder perdura por
bastante tempo sob o comando de um membro da família.
- Senhor – o soldado que fazia
expedição em solo interrompeu meu pensamento. – Senhor, acreditamos que não se
trata do mesmo homem. Pelo que checamos na tal rede social, ele foi deposto em
seguida. O povo conseguiu que fizessem um novo processo para escolha do líder.
O que estamos entendendo é que em meio a uma turbulência política, que somada à
insatisfação geral do povo, um candidato encontrou brecha e se elegeu. Daí, a
crise só se agravou quando constataram o grande erro cometido.
- Soldado, consultando anotações de
meu pai...
- O grande comandante Theof Limpzk.
- Exato! Existia um ex-líder que
ameaçava assumir o poder a qualquer momento. É deles que estávamos falando?
- Não, senhor! Estamos falando de
outro. Uma personalidade exótica que, pelo visto, era completamente
incompatível para o cargo em questão. Curiosamente, essa pessoa tem o mesmo
nome muito comum em nossos animais de estimação.
- Bolsonaro?
- Não, Tiririca.
- Pelo generoso Houtrap, que destino
tenebroso!
Mais do nunca era necessário fazer um
enorme relatório da história daquele povo e como chegaram à sua ruína. Aliás,
sobre a sua ruína, ainda não sabíamos como se iniciou a guerra. Sabíamos apenas
que foi algo generalizado. Permaneci então aguardando novas atualizações da
equipe em solo.
- Senhor, estamos procurando mais
informações, contudo temos alguns detalhes que nos ajudam a montar esse
quebra-cabeça. Ao que parece, a guerra teve princípio entre duas províncias que
não identificamos ainda. Todavia, tudo alcançou maiores proporções quando uma
região conhecida como sul tomou proveito da situação para declarar
independência. Esse foi o estopim para que toda a nação se enfrentasse por
motivos próprios e defendendo seus interesses.
Características como essas faziam
nossos pesquisadores considerarem o povo desse planeta tão primitivo. Não eram
leais aos seus líderes. Não existia uma hierarquia instituída desde o berço
para ser seguida e determinar a posição de cada um nos pilares que sustentavam
a sociedade. Meus soldados são filhos de soldados. Sua obediência e total
devoção à nação estão em seu código genético. Sequer precisam ser lembrados
disso. Tampouco necessitam ser orientados quanto a isso quando jovens. São como
os felinos de estimação da Terra. Os felinos de estimação da Terra já nascem
sabendo que precisam enterrar seus dejetos. Não precisam ser treinados em
relação a isso. Nesse quesito, podemos considera-los mais evoluídos que os
próprios homens. Aliás, muitos seres da fauna local devem ser considerados mais
evoluídos que os humanos. Por incrível que pareça, existe uma ave que, instintivamente,
utilizando apenas algo como terra molhada, constrói sua própria residência. Uma
moradia mais resistente às forças da natureza que muitas construídas pelos humanos,
mesmo após muitos anos de estudo e dedicação a esse tipo de arte. Sem falar nas
ferramentas, tecnologias e materiais sofisticados que os humanos possuem à sua
disposição.
Passado meu momento de reflexão, a
equipe em solo informou que tinha feito uma considerável coleta de dados e
pediu então permissão para voltar a bordo. Considerei que seria uma atitude
apropriada para o momento. Não havia mais necessidade de expô-los naquele
ambiente que poderia ser ocasionalmente tranquilo, mas, ao mesmo tempo, prestes
a se tornar hostil a qualquer momento. Confiei na avaliação da minha equipe de
considerar que já tinham coletado informações suficientes e autorizei o retorno
para a nave.
Enquanto viajávamos de volta para o
planeta Arizla, comecei a montar o relatório conforme ia organizando as
informações coletadas. Era uma gama de informações impressionante. Muitas delas
estavam codificadas em uma língua própria chamada Meme. Aparentemente,
sarcasmos, indiretas e falsas informações eram as principais formas de se
propagar conhecimento pela rede social. Eram tantas informações que, acredito
eu, para uma maior capacidade de assimilação, os humanos sempre resumiam tudo a
uma imagem com legenda. Qualquer coisa maior que isso recebia menos atenção,
independentemente da sua real importância.
Após uma longa viagem até o planeta
Arizla, finalmente encerrei o relatório de maneira completa. Além dele, uma
ótima apresentação estava elaborada. Para completar, todo o texto explicativo
estava decorado. Tudo pronto para contar ao primeiro ministro Kravotz III como
aquela população foi dizimada em uma guerra civil. Uma triste história que se
iniciou com a insatisfação de um povo com um golpe de estado e teve como
principal estopim a desavença entre duas províncias, Rio de Janeiro e São
Paulo, a cerca de um desacordo cultural sobre um termo técnico, biscoito ou
bolacha.
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