quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: Senhora Neves


Invocação Danada
- O melhor é dormimos todos juntos no mesmo quarto esta noite.
Gustavo, o mais velho do grupo, sacramentou a conversa com essa sugestão. Aquele grupo de cinco jovens estava hospedado há quatro dias em um casebre no meio do nada. Aquele lugar era a única opção para eles descansarem da longa viagem que estavam fazendo pelo interior. O único problema é que na primeira noite coisas estranhas começaram a acontecer por lá. Objetos voando contra a parede, portas batendo, sons de passos e pernas sendo puxadas. Eles queriam ir embora, mas teriam de aguardar mais dois dias até o trem passar novamente por aquelas redondezas.
Decisão tomada, foram todos para o maior quarto. Gustavo e sua namorada, Paula, dormiram na cama de casal, Bernardo e Cotó se ajeitaram no chão com algumas almofadas, Nina ficou com a cama de solteiro que colocaram atrás da porta. Deixaram a luz acessa e, mesmo assim, pegaram rapidamente no sono de tão cansados que estavam.
Enquanto isso, no sótão da casa, sem que pudessem ser notadas, duas entidades conversavam. Uma era um baixinho gordinho, remetia a um menino de aproximadamente 16 anos. A outra, mais alta, magra e com cabelos despenteados, lembrava um garoto de, no máximo, 19 anos.
- Cara, hoje vamos barbarizar – disse o gordinho. – Eles estão no quarto que tem os livros.
- Já estou imaginando o que pensou – completa o magro. – Vamos fazer uma biblioteca voadora.
- Isso! Livros pelo ar! Eles não saberão o que fazer!
As duas entidades riam bastante da ideia, quando, atravessando o teto, uma terceira entidade surge. Um homem mais velho, aproximadamente 30 anos, barba por fazer, vestindo jaqueta, calça justa e botas, na mão direita dois anéis, na esquerda uma garrafa de Jack Daniel's pela metade. Os dois param de rir e antes que pudessem perguntar algo, ele fala:
- Vocês são uns retardados – ele diz e depois repete apontando com a garrafa para eles. – Vocês dois! Um! Dois! Dois retardados!
- Calma aí, colega – fala o gordinho com voz apaziguadora. – Do que está falando?
- Vocês dois com essa merda de brincar de Gasparzinho.
- Mas o que queria? – pergunta o magro. – É para isso que estamos aqui!
- Sim, mas precisam ser tão cabaços?
Após ter dito isso, ele dá um longo gole na garrafa, diz que já volta e sai do sótão atravessando a parede. As duas entidades ficam se olhando sem entender o que acabou de acontecer. Antes que pudessem falar algo, um grito ecoa pela casa. Era a voz da Nina.
- O que foi? – pergunta Cotó, ainda deitado no chão. – O que houve, Nina?
- Eles me atacaram!
- Oh, não! – exclama Bernardo, já de pé em frente a cama de Nina. – Eles puxaram o seu pé?
- Não, meu peito!
- Seu peito? – Bernardo pergunta mais apavorado ainda. – Puxaram seu peito? As agressões estão piorando, gente!
- Não – responde Nina ajeitando a blusa. – Não puxaram. Apertaram.
- Como assim? – dessa vez é Gustavo que pergunta já de pé. – Apertar de torcer? De machucar?
- Não – responde Nina com o rosto corado. – Foi meio que uma patolada. Uma buzinadinha. Sabe do que estou falando? Um fóm-fóm.
Os meninos estão ao redor da cama de Nina que tenta explicar o que aconteceu. Estão todos confusos, quando Paula, que ficou só na cama de casal grita.
- PAULA! – Gustavo reage gritando e indo em sua direção. – O que houve, meu bem?
- Deram um tapa na minha bunda!
- Uma agressão?
- Não – responde Paula. – Um tapa mais no estilo de pegada. Sabe aqueles tapas que te fazem sentir gostosa?
- Sei – diz Gustavo. – Aqueles que lhe dou quando estamos a sós.
- Não. Os seus são meio frouxos. Parece que tem medo de me quebrar. Esse foi bem dado. Estalou. Foi de mão cheia. Nada de pegar no pulso ou só ponta de dedos. Foi um senhor tapa.
De volta ao sótão, as duas entidades ainda se olhavam caladas, quando o homem mais velho volta atravessando a parede. Ele parece encenar uma dancinha e, com as mãos, faz movimentos que parecem bicos de pato.
- Peitinho! Bundinha! Entenderam, seus manés?
- Você se aproveitou delas? – pergunta o gordinho.
- Mas é claro – responde o homem com os braços abertos. – Acham que vou perder tempo com livros voando ou parar relógio?
- Mas isso é proibido – diz o gordinho com ar de dúvida. – Não é?
- Proibido? Agora tem regras para quem morreu? Não pode apertar peitinho, mas fazer menina boa de família descer pelas escadas de quatro AO CONTRÁRIO, eu disse, AO CONTRÁRIO, pode! Muito engraçado.
- Bem pensado.
- Pois é – o homem mais velho continua. – Fazer o Ronaldo se tremer todo na concentração da Copa do Mundo aqueles espíritos fedorentos franceses podem, mas eu não posso apertar um peitinho? Pois sim! Tem de aloprar!
- É isso aí!
O gordinho concorda e sai do sótão decidido. O homem mais velho fica calado, com um sorriso cínico, olhando para o magro. Sua expressão é de como quem diz que ganhou uma discussão e um adepto ao mesmo tempo.
No quarto, Gustavo e Paula discutem por causa da declaração que ela deu. O clima é tenso. Nina permanece sentada na cama, encolhida e de cabeça baixa. Bernardo tenta confortá-la. Cotó tentar minimizar a discussão:
- Gente, calma! É isso que eles querem! Querem a nossa discórdia.
- Não fale, besteira – responde Gustavo. – A discórdia foi criada por ela. Você ouviu o que ela falou.
- Eu sei – Cotó tenta argumentar, quando dá um pulo e um grito. – AI, CARALHO!
- Cotó – Bernardo se levanta da cama para ajudar o amigo que pulou tão alto que caiu no chão. – O que houve?
- Eles me deram uma dedada no cu.
Voltando para o sótão, assim que atravessou a parede, o gordinho leva uma garrafada na cabeça do homem mais velho:
- Seu imbecil!
- O que foi?
- Seu imbecil – repete o homem mais velho levantando a garrafa para ameaçar bater no gordinho novamente. – Você é viado, seu retardado?
- Claro que não!
- Então por qual motivo resolveu enfiar o dedo no rabo do coitado?
- Eu tenho vergonha de meninas. Entrei em pânico quando as vi e não consegui pensar no que fazer.
- Puta que pariu – resmunga o mais velho que depois se vira para o magro. – Vem cá, paspalho. Vem comigo!
O mais velho pega o magro pelo braço e atravessam a parede. Eles chegam ao quarto. Nina continua encolhida na cama, Cotó, ao seu lado, também está sentado, mas com as mãos entre a cama e a bunda, como se a estivesse protegendo de algo eminente. Bernardo está ajoelhado de frente para os dois, ele está falando tentando acalmá-los. Gustavo encostado na parede confronta Paula que está de pé no meio do quarto.
- Ainda espero uma resposta sua, Paula – Gustavo insiste no assunto, até parar, pois ela está com uma expressão estranha. – Que cara é essa, Paula? Você está sorrindo?
- Claro que não – ela nega, mas sua expressão é de sorriso de canto de boca. – Eu estou... Ai! Eu estou... Ui! Estou de booooooooooooooa.
Eles não entendem o que está acontecendo. Tão pouco podem ver que, na verdade, o mais velho está agarrando e sarrando a Paula por de trás. Neste meio tempo, ele aponta para que o magro faça o mesmo com a Nina.
Em menos de um minuto, Nina e Paula estão levitando. Elas foram levantadas pelas entidades que colocam suas pernas em volta da própria cintura. Os meninos se assustam com a cena das duas “voando” e com uma expressão que parece ser demência, mas na realidade é prazer. O mais velho começa a gargalhar e, com isso, assusta mais ainda os meninos que conseguem ouvir sua voz e o hálito de álcool.
- Caralho – fala Bernardo espantado. – Que porra é essa?
- Elas estão possuídas – diz Cotó. – Corre, porra!
Eles saem correndo e deixam as meninas no quarto. As duas entidades se aproveitam do momento ao máximo e depois vão embora. As meninas ficam ali, largadas ao chão, despenteadas, com uma expressão de total insanidade no rosto. Nunca mais quiseram sair daquela casa. Especialistas diziam que os espíritos que atormentavam aquela casa já tinham se apoderado dos corpos delas de tal maneira que nem um padre exorcista daria jeito.
Naquele dia, ao voltar para o sótão, tanto o mais velho, quanto o magro, fizeram uma festa.
- Você tinha que ver o estrago que fizemos – disse o magro para o gordinho. – Foi demais!
- É isso aí, garoto – completou o mais velho erguendo sua garrafa. – Aprendeu com o mestre! Agora sim vai curtir a eternidade.
- Um novo mundo se abriu para mim – continuou o magro que se direciona para o gordinho. – O que houve, cara?
- Estou preocupado – responde o gordinho que está sentado no canto do sótão olhando fixamente para uma de suas mãos. – Acho que preciso de um exorcismo.
- Exorcismo, moleque? Para exorcizar o que? Expulsar o que de você?
- Esse cheiro de cu que não sai de jeito algum do meu dedo.


Próximo conto da coleção: Seu Cosme das florestas