sábado, 15 de outubro de 2016

O fabuloso imaginário do absurdo

Senhora Neves
Toda manhã de sábado era a mesma coisa. Eu e os meninos da rua íamos para um terreno baldio bater uma bolinha. O tal terreno baldio, para ser preciso, era quase um quarteirão inteiro se não fosse por uma única casa velha. Lá morava a senhora Neves, uma mulher idosa famosa pela antipatia. Morou só a vida toda. Várias lendas sobre ela eram conhecidas pela vizinhança. Ninguém tinha coragem de comprar um lote próximo a casa dela para morar por conta disso. Dentre as lendas mais famosas estava a que ela era uma bruxa. Uma delas era a do Armandinho Molha Selo. Ele assim ficou famoso depois  de uma tentativa de recuperar uma pipa que caiu no telhado da senhora Neves. A lenda dizia que a senhora Neves, quando viu que ele estava no telhado dela, transformou o Armandinho em um sapo. Ela passou a deixar o Armandinho em sua mesa de escrivaninha e toda vez que precisava mandar uma carta, ela umedecia os selos no corpo gosmento dele.
Certa manhã de sábado estava pelo terreno jogando bola com mais dois colegas, o Toninho e o PH. A brincadeira era a tradicional altinha. Usando somente os pés, peito e cabeça, não podemos deixar a bola cair no chão. Em um determinado momento, para fazer graça, o Toninho deu uma bicuda para o alto. Era um recurso para atrapalhar os outros e assim a bola cair no chão. Ela foi por cima de mim. Não me dei por derrotado. Continuei correndo de costas para ficar debaixo da bola e aterrissá-la no meu peito. Enquanto estava correndo apenas olhando para a bola, perdi a noção de perspectiva e dei uma trombada no muro da senhora Neves. Apaguei.
- Você está bem, cara? – perguntou o Toninho enquanto recobrava a consciência. – Você deu uma senhora pancada de cabeça.
- Acho que sim – respondi enquanto apalpava a cabeça à procura de galos ou ferimentos.
- Que bom! Porque a bola caiu por cima do muro da senhora Neves.
Segundo a regra da galera, quem deixava a bola sair que tinha de resgatá-la. Eu achava que a culpa era do Toninho, mas, como ainda estava um pouco desorientado por conta da pancada, acabei aceitando sem relutar. Pedi apenas uma ajuda para subir no muro e lá fui eu entrar no quintal da senhora Neves. Aquele era um local sagrado que, segundo as histórias, poucas pessoas já pisaram e depois saíram com vida.
A cena era algo bem próximo do meu imaginário. Um jardim com mato alto indicando descuido. Alguns vasos quebrados, um banco de madeira apodrecido e caindo aos pedaços, a parede da casa estava com a pintura descascada e as janelas estavam enferrujadas. Gastei um bom tempo reparando naquele cenário. Tanto que cheguei a esquecer de procurar a bola.
- Moleque enxerido, vai se arrepender de ter entrado aqui.
Antes que pudesse me virar para trás, senti sua mão pesando em meu ombro. Para uma senhora tão idosa e com aparência de debilitada, aquela mão pesava tanto quanto a de um caminhoneiro. Tentei me desvencilhar, mas ela era incrivelmente forte. Implorei pela minha vida e que me soltasse. Ela então arregalou seus olhos de maneira macabra como nunca tinha visto antes em filmes de terror e disse:
- Nem mais um pio. Passarinho meu só canta quando eu mando.
Assim que ela terminou a frase, eu tinha me transformado em um passarinho. Lá estava eu, um passarinho indefeso na mão da senhora Neves. Com aquela mão firme, a senhora Neves me levou para dentro da sua casa. Tentava me debater, mas era impossível. Se na forma de um garoto de doze anos não consegui fazer com que ela me soltasse, imagine agora como um pardalzinho fuleiro.
Fiquei por dias preso em uma gaiola na sala da senhora Neves. Toda tarde, ela me levava para a varanda e dava a ordem para cantar. Caso não obedecesse, ela enfiava a mão na gaiola e me dava um peteleco. Isso só aconteceu nos primeiros dias. Depois cansei de levar petelecos e passei a obedecer. Cantava de tudo. Qualquer música que me vinha à cabeça. Com o tempo, ela me ensinou algumas músicas do Ataúlfo Alves. Sempre que as cantava, ganhava um gomo de tangerina. Era bem melhor que aquele alpiste seco e sem graça.
Certa tarde cansei daquilo tudo. Precisava fugir. Não sabia como iria viver na forma de passarinho, mas ali não ficaria mais. Bolei um plano e resolvi colocá-lo em prática. Quando a senhora Neves estava carregando a minha gaiola para a varanda, me joguei na vasilha onde ela colocava água para mim. Pulei na vasilha batendo as asas freneticamente. Foi água para todos os lados, inclusive na senhora Neves que, com o susto, deixou a gaiola cair de suas mãos. Com o impacto no chão, as varetas de bambu da gaiola se partiram. Mesmo atordoado com a queda, saí da gaiola e disparei a voar. Parti na direção do quintal com a velha bruxa me seguindo. Estava com uma das asas machucadas e batendo em menor velocidade que a outra. Minha vantagem de distância da senhora Neves não era tão grande. Ainda assim, fugi. Reuni minhas forças e consegui subi a uma altura suficiente para passar por cima do muro. Assim que o cruzei no ar, como se o feitiço só tivesse efeito na casa da senhora Neves, voltei a ser menino. Estava a uns três metros de altura quando o pardalzinho frágil se transformou no menino que vos fala. Caí me espatifando no chão e desmaiei.
- Você está bem, cara? – perguntou o Toninho enquanto recobrava a consciência. – Você deu uma senhora pancada de cabeça.
- Cara, você não vai acreditar. Aquela velha maluca da senhora Neves me transformou em passarinho e me colocou para cantar para ela. Devo ter ficando uns...
- Você está doido? Tem uns vinte minutos que você está aí desacordado. Estávamos quase indo na sua casa chamar os seus pais.
- Ué! Será que sonhei isso?
- Claro que sim, seu doido.
- Que bom então, né?
- Bom nada! Você ainda tem de pegar a bola lá.
- Droga – fiz uma pausa para procurar galos ou ferimentos na cabeça. – Só quero te pedir uma coisa. Chamem imediatamente a polícia caso me escutem cantando Ataulfo Alves.

Próximo conto da coleção: Invocação danada