domingo, 13 de março de 2016

Sete dias de véspera

Capítulo Anterior Aflição de mãe
A semana, como imaginava, seria muito corrida. Começou com um domingo morto e estava em uma ressaca de merda. Assim que cheguei do almoço com meus pais, no dia anterior, passei em um pequeno mercado perto de casa e comprei alguns biscoitos salgados para comer de noite. Para acompanhar, levei a única bebida que conseguiria consumir sem ter uma geladeira ainda em casa: tequila. Que mentira! Comprei primeiro a tequila e depois os biscoitos para acompanhar. Entre um punhado de biscoito enfiado na boca e um shot de tequila, analisava como faria a pintura do quarto e da sala. Na metade da garrafa desisti do copinho de café que peguei no restaurante para fazer shot e pulei para os goles diretos no gargalo. Cinco horas depois a garrafa estava vazia na pia da cozinha, os pacotes de biscoito amassados no chão e eu devastado no sofá. Como disse, o domingo foi destruidor. Fiquei o domingo em um estado zumbi vagando entre o banheiro e o sofá, me limitando a beber água direta da torneira para minimizar a ressaca.
Já na segunda, recuperado parcialmente, fui à procura de tintas, rolos, bandejas e todas as outras coisas que uma que pessoa que quer se passar por pintor profissional compraria. Faltou apenas uma coisa, comprar a técnica. Ainda assim achei que conseguiria um resultado razoável. Entre analisar um galão e outro, resolvi mandar uma mensagem para Juliana pedindo que adivinhasse o que estava fazendo. Ela, sempre indo na ferida, me respondeu provocativamente:
“Agonizando de ressaca no chão de algum lugar.”
Como não amar uma mulher que sabe te provocar? Repliquei de maneira seca e direta. Disse apenas que estava comprando tinta. A ideia era instiga-la a perguntar para qual propósito precisava de tinta. Mais uma vez ela foi ferina. Porém, agora, como estava desatualizada sobre a minha vida, errou o alvo:
“Pintar o apartamento não é a melhor opção para salvar seu casamento.”
Pois é, ela não sabia que tinha saído de casa. Não nos falávamos desde dois dias antes da mudança. Era o momento. Claro que preferiria que fosse ao vivo e assim poderia presenciar sua reação. Ela merecia que fosse daquele jeito. Só que não dava para segurar até o sábado. Era importante que soubesse antes. Isso mudaria totalmente sua expectativa sobre a festa. Ao menos era o que eu esperava.
“Não, baby! Estou comprando tinta para pintar meu apartamento novo. Saí de casa!”
Após alguns segundo encarando seguidamente a tela do celular esperando por uma reação dela que não veio, o vendedor me interrompeu me chamando. Aparentemente não tinham cor branca. Sugeriu então gelo, nude, palha ou outra cor que honestamente sequer sabia que existia. Coloquei o celular no bolso e fui com o vendedor ver as opções. Para mim, eram todas palhetas brancas com níveis diferentes de empoeiramento, mas ele insistia em dizer que fazia uma diferença enorme quando aplicadas em um ambiente apropriado. Como se algo em minha vida fosse apropriado. Depois de alguns minutos olhando em silêncio, pedi para o vendedor um tempo para pensar. Peguei o celular na tentativa de ligar para meu pai e pedir uma ajuda. Acionei a tela e vi sete ligações perdidas da Juliana. A oitava começou a tocar. Sorri espontaneamente e atendi:
- LOUCO – ela tinha, em alguns momentos, uma forma estranha de me chamar. – VOCÊ É LOUCO? QUAL O SEU PROBLEMA?
Perguntas como essas quando feitas para mim costumam ser recebidas de forma bem subjetiva. Afinal, elas se aplicam em tantas possibilidades que me obrigavam a refletir atentamente para saber ao certo do que falava especificamente. Acreditando então que em partes fosse por conta da saída de casa, contei no detalhe. Era possível perceber que ela estava pasma e ao mesmo tempo eufórica com a notícia. Ela, por mais que tivesse interesse neste tipo de acontecimento, era muito cética sobre tal possibilidade. Sempre ficou bem claro o quanto ela estava envolvida comigo, assim como sua convicção de que jamais sairia com um homem casado. Ao mesmo tempo, ainda que tão interessada quanto eu que algo acontecesse, nunca me pediu para tomar essa decisão.
Não, não era fácil manter contato e nada rolar entre os dois. O clima era sempre intenso. Suas amigas notavam. Os outros professores notavam. Talvez em sua cabeça transbordavam tantos fundamentos básicos de ética sobre sair com homens casados ou força-los a se separar para enfim ter algo com eles, que isso lhe dava a segurança para agir com rigidez quanto aquilo. Eu a odiava demais por isso.
Acredito que, enquanto ela em algum momento torcia para que aquilo acontecesse, ela também tinha a certeza que com a chegada da formatura nunca mais nos veríamos se não acontecesse algo. Com o passar do tempo teríamos apenas as trocas de mensagens que iriam inevitavelmente esfriando. A convivência contínua de colégio acabaria naquele evento e, se nada tivesse se concretizado, tudo ali terminaria de vez. Seria apenas questão de tempo. A forma como ela lidava com serenidade com aquela possibilidade me deixava louco. Eu sou instintivo, impulsivo e irresponsável. Ela era centrada, racional e paciente. Eu sabia desde o início que isso seria uma dor de cabeça enorme, mas como eu queria aquela dor de cabeça.
A ligação durou uns vinte minutos. Fato que irritou o vendedor que me abandonou e foi almoçar. Falamos obviamente da decisão tomada, de o quanto estava certo daquilo e como estava lidando com a nova vida. Mesmo com ela não tendo feito sequer uma mínima menção ao fato, deixei claro que nunca me senti pressionado por ela. Ela consentiu, não escondeu que era uma notícia que na sua individualidade egoísta lhe satisfazia, mas ao mesmo tempo lamentava por um casamento fracassado. Que diabos de garota com vinte e poucos anos tem uma cabeça tão boa quanto ela? Custava simplesmente falar que estava feliz com a notícia e que pretendia comemorá-la trancada comigo no quarto por todo um final de semana? Claro que não! Contudo, ela não somente comentou aquilo, como acrescentou que o fato de estar solteiro não significava necessariamente que teríamos algo. Para ela, era necessário demonstrar um real interesse além de um final de semana inteiro trancados em um quarto. A cretina parecia ler minha mente. Acho que conversávamos demais.
- Baby, por fim, antes que desligue. Você prefere frequentar um quarto com a parede cor gelo, palha, areia ou nude?
- Baby, honestamente, tenho muita esperança que, no dia que começar a frequentar o seu quarto, me entretenha a ponto de sequer conseguir reparar na cor da parede dele.
Desnorteado e sorridente, encerrei a ligação, paguei pelas tintas e outras coisas e fui embora. Como o prazo para a entrega era de três horas no mínimo, fui almoçar no restaurante da minha rua. Ao entrar, Adriana se lembrou de mim e perguntou pela Tatiana como quem está sondando para saber se era namorada, esposa ou parente para evitar comentários constrangedores em outras situações futuras. Disse que era minha irmã mais velha:
- MAIS VELHA?
- Pois é, ela usa muito Nivea Renew.
Ela não entendeu a gracinha, anotou o pedido e foi embora. Almocei acompanhado de duas garrafas de cerveja e levei outras duas para casa. Na portaria, para minha frustração, Pereira disse que os móveis não chegaram. Nem os eletrodomésticos. A geladeira era minha maior preocupação. Ainda sem ela, fui obrigado a beber em ritmo de Oktoberfest as duas garrafas para que não ficassem quentes. Daí, o esperado acontece. Entregam as tintas, você está meio relaxado com um total de quatro cervejas em uma hora e meia e acaba achando melhor deixar para mais tarde. Deitei no sofá e dormi. Não preciso dizer que quando acordei, por volta das oito da noite, nem cogitei iniciar a pintura. Que ficasse para o dia seguinte. A melhor opção era ir para a Lapa.
Acordei na terça-feira com o toque do celular. Eram mensagens da Juliana perguntando se poderia ajuda-la na escolha do vestido para a formatura. Perguntei com sinceridade se era para ir ver pessoalmente. Não, ela só queria saber se estava com tempo livre para receber as fotos conforme experimentava. Ok, deu para perceber que não iria encontra-la naquele momento. Quando ia responder que estava sempre com tempo livre, percebi que era quase meio-dia. Dormi além da conta. Talvez por ter chegado em casa da Lapa quase cinco da manhã.
“Baby, perdi a hora e estou indo voando para a sua terra. Tenho conselho de classe daqui uma hora. Vai mandando as fotos e chegando lá te respondo uma a uma.”
Tomei banho, vesti meu uniforme básico de calça jeans e camisa de malha preta, subi na moto, vi rapidamente a primeira resposta dela me chamando de irresponsável e parti. De moto, o caminho até o colégio na Pavuna era bem rápido. Durante todo percurso senti o celular vibrando de mensagens chegando. Já imaginava a quantidade de fotos que estariam à minha espera. Cheguei com quinze minutos de atraso e mesmo assim fui elogiado por Verônica, uma das coordenadoras do colégio. Era habitual chegar com quase uma hora de atraso. Agradeci pelos elogios, sentei-me ao redor da mesa e, enquanto mexia no celular, tentava me inteirar sobre a pauta em questão. Lá estavam elas, dezessete fotos. Uma para cada vestido experimentado.
Era esperado qualquer tipo de surpresa, afinal estava acostumado a ver Juliana sempre com roupas de aula, nada espalhafatoso, mas também nada largado, apenas o básico. Se deparar com ela em um vestido de gala, mesmo sem maquiagem e penteado era o suficiente para provocar pânico. Aqueles pânicos maravilhosos que sentimos quando estamos em uma loja de doces, ou quando na entrada da festa avisam que é Open Bar. Exceto por três que eram de gosto duvidosos, os demais ficaram espetaculares. Disse para escolher todos e usar um por dia comigo. Ela riu, disse que sequer podia pagar por um e pediu que escolhesse logo qual era o melhor. Não tinha melhor. Ela nasceu para usar todos aqueles vestidos. A cintura delineada, os seios preenchendo o decote e a parte de uma de suas pernas escapando pela fenda era algo que precisava ser visto pelo resto da minha vida. Com aquilo, cancelava internet, vendia a televisão, jogava fora meus livros e ficaria rindo das pessoas que se contentavam em deslumbrar o pôr-do-sol no Arpoador.
Não adiantava, precisava escolher um vestido. Fiquei uns vinte minutos passando foto para cá, foto para lá, dava zoom, analisava aqui, enxergava acolá. Amaral, colega de vida e de profissão que estava ao meu lado, me sinalizou para disfarçar. Não dava. Era impossível. Tinha uma meta para bater e ficar admirando aquelas fotos era cada vez mais prazeroso. Ele me deu uma cotovelada e com a cabeça apontou para Verônica como quem diz para prestar atenção. Não quero prestar atenção na Verônica e seu discurso chato para justificar que o décimo terceiro só será pago no carnaval. E se fosse para receber tal notícia, que seja olhando para o que tanto me fascinava naquele momento. Amaral, discretamente resolveu dar uma checada no que tanto olhava no celular:
- É a Juliana do terceiro ano?
- É, mas fala mais alto que a senhora idosa em coma no hospital de Saracuruna não ouviu direito.
- Por que ela está te mandando fotos de vestido?
Conhecia o Amaral tinha mais de quinze anos e ainda ficava estupefato com a capacidade dele de ser desligado das coisas. Por que diabos uma aluna mandaria fotos dela de vestido de gala para seu professor? Era algo tão óbvio e limitado de respostas que sequer consegui rebater com uma cretinice à altura da estupidez dele. Optei então por guardar o celular por alguns minutos, sorrir debochadamente para ele e me levantar para pegar um copo de café com biscoitos. É sempre ótimo começar o dia com uma refeição que envolva biscoito tipo água e sal sem uma gosma sequer para se passar em cima e um café melado frio.
“Anda! Qual acha mais bonito?”
Juliana interrompeu meu momento de professor concentrado na reunião com outra mensagem. Não sabia o que responder. Todos estavam ótimos porque era ela vestindo. Acabei sendo influenciado pelo azul marinho, pois na foto ela fez uma pose mais sexy que com os outros e parecia o que tinha a logística mais prática de retirada em caso de um ataque feroz meu. Instintivamente pensei em como lidar com ela e aquele vestido. Como agarrar, apertar, puxar, tirar delicadamente uma das alças enquanto a outra mão a pressiona com força enchendo suas costas. Respondi o que me veio à cabeça.
“Esquece! Você não vai me agarrar no banheiro da festa!”
Era capaz de, naquele momento, ouvir a voz da Tatiana dizendo que ela era a garota certa. Claro que ela era a garota certa e que tentaria agarrá-la no banheiro da festa. E o fato de não conseguir tirar dela um minuto de descontrole a tornava um desafio proporcionalmente grande a esta certeza.
Respondido o vestido, ela não fez mais contato. Provavelmente estava falando com outras amigas pedindo opinião, ou preenchendo o formulário para abrir um crediário para pagar o vestido. Voltei minha atenção à reunião. Metas para o ano que estava por vir, orientações para as correções das provas finais, distribuição de turmas. Tudo uma chatice sem fim que poderia ser feito por um único e-mail que ignoraria igualmente como estava fazendo naquele momento. Ao final, como de costume, liberaram a bebida e acenderam a churrasqueira. Agora sim estava na Pavuna.
Socializava com um professor, olhava uma foto recebida, conversava com outro grupo, mais uma bisbilhotada nas imagens. Mandei uma mensagem para Juliana perguntando que horas voltaria para a Pavuna para quem sabe nos esbarrarmos por lá e ela me cortou na maneira de sempre:
“Não! Somos ainda aluna e professor! Seja paciente e aguarde até o sábado. Parece adolescente!”
Ela gostava muito de exclamações e isso era um dos raros defeitos dela. Talvez eu seja tão cretino que acabei escolhendo como defeito algo que jamais me faria perder o interesse nela. Enquanto refletia separadamente sobre como responder à altura, Verônica se aproximou e puxou assunto sobre a formatura:
- Eu sei que você vai e não apenas porque é o patrono da turma – fiz minha expressão de bobo conhecida como cara de nascença, mas não colou. – Todos sabem que você vai por conta da Juliana do terceiro ano. Diferentemente dela, você não sabe disfarçar e isso é grave. Uma aluna ficar demonstrando paixonite por professor é normal e esperado. O que não posso é ter um professor parecendo um desenho animado com os olhos saltando em formato de coração toda hora que uma determinada aluna passa à sua frente. Só te peço duas coisas, por favor. Controle a bebida. Você tem uma mão nervosa que insiste em derramar tudo que é alcóolico garganta abaixo. E contenha-se em relação a ela. A família dela estará por lá e eles talvez fiquem preocupados com um professor cercando a filha como um urubu faminto.
- Verônica, calma. Eu não sou tão burro assim.
- Não, não é. Eu sei disso. Nunca vi um professor contornar tão bem as situações como você. Por conta dessa sua mania de querer bancar o cara legal e manter uma pinta de mau ao mesmo tempo, fica uma dúzia de alunas por semestre se esfregando em você. E me impressiona o quanto consegue reverter isso sem magoar as meninas ou se expor.
- Então...
- Não terminei – ela me cortou. – Só com essa menina que você fica um palerma. Parece os outros professores daqui que sequer disfarçam e conversam com as alunas encarando diretamente os decotes delas. Faça o seguinte, esqueça os dois pedidos anteriores. Vou fazer apenas um e quero que pense bem nele, ok?
- Ok. Pode falar.
- Lembre-se que é casado.
- Verônica, eu saí de casa semana passada. Eu e Maria Fernanda estamos nos separando.
- PUTA QUE PARIU, SEU MERDA – ela me encheu de tapas enquanto olhava para trás conferindo se algum professor notara seu chilique. – Você tem merda na cabeça? Puta que pariu! Puta que pariu! Escute aqui o que vou te dizer e você vai me obedecer. Não aceito não como resposta. Você vai me obedecer?
- Não!
- Seu merda – mais um tapa na cabeça. – Você está proibido de falar isso para ela, entendeu?
- Ela já sabe desde ontem.
- PORRA! MERDA! QUAL O SEU PROBLEMA?
- Verônica, espero que os professores pensem que estou pedindo um aumento, ou ficarão muito curiosos sobre o teor da nossa conversa.
- Fodam-se todos eles. Por que você contou para ela? Você quer confundir a menina? Você contou pessoalmente? Seu desgraçado! Você encontrou com ela, contou, ela se derreteu toda e passou esse seu pau fedendo a tequila nela?
- Verônica – parei até para respirar profundamente porque estava engraçada a cena. – Contei porque era necessário. Costumo falar sobre tudo com ela todos os dias. Era o que tinha de ser feito. Não, não foi pessoalmente, então não passei meu pau fedendo a tequila nela. E, por favor, confie em mim. Tentarei ao máximo manter meu pau, que espero estar cheiroso no dia, longe dela enquanto tivermos testemunhas ao nosso redor. Agora vamos mudar de assunto. Já ouviu falar em assédio moral?
- Enfie o assédio moral no seu cu, seu fresco. Escute bem. Não vou ficar de babá de você na festa, mas saberei de tudo. Não quero ameaçar o seu emprego e nem vou, pois é o nosso melhor professor quando, obviamente, se limita a dar aula. Só quero lembrar que ela é uma garota diferenciada de todas para quem já deu aula por aqui. Portanto, se fizer merda, vai magoar uma menina que queria apenas retomar os estudos.
- Verônica, minhas intenções com ela são as melhores.
- São, mas você sempre faz merda.
Aquela frase caiu com o peso de uma vida que começou sujando a mão da obstetra e não parou nunca mais de cagar. Era um fato do qual não podia correr. Por melhores que fossem as minhas intenções, cedo ou tarde faria uma merda. A formatura não seria um final de novela em que todos ficam felizes com as ambições alcançadas, tudo se congela e acaba. A vida seguiria. Eu continuaria professor em um supletivo para maiores de idade em que muitas das vezes era atacado de forma covarde pelas alunas. As idas para a Lapa nunca parariam. Nem as bebedeiras. Merda! Não tinha como e sequer sabia lidar com uma verdade desta magnitude. A solução foi encher a cara no churrasco de fim de ano da escola e acabar confirmando a teoria de Verônica de que tenho uma mão nervosa com bebida. Tão nervosa que foram necessárias três idas emergenciais ao mercadinho da esquina para comprar mais cerveja. Na quarta, quando estávamos apenas eu, Verônica e mais três professores, foi escolhido por maioria (fui o único voto contra) encerrar o churrasco.
Já tinha passado de uma da tarde da quarta-feira quando acordei no susto. Estava no chão da minha sala entre as caixas. Levantei com calma e ainda assim os traços da ressaca se manifestaram. A caminho do banheiro para tomar uma ducha na tentativa de amenizar as coisas, passando pelo quarto, vi as latas de tintas e seus apetrechos. Merda! Tinha de pintar o apartamento. Não precisava de pânico, era apenas uma tarefa simples que mesmo começando no início da tarde poderia ser encerrado naquele dia mesmo. Segui para o banheiro e tomei um banho bem rápido. A ressaca continuou entranhada em mim, mas estava um pouco mais revigorado. Decidido então, abri a lata de tinta e precisei de exatos quatro segundo para voltar correndo para o banheiro. Reforçado pela ressaca, o cheiro me enjoou. Não sei o que tinha ou se tinha algo no estômago, mas sei que saiu bastante coisa. Desisti de pintar. Só que para concretizar a minha desistência, precisava fechar a lata de tinta e a cada vez que tentava me aproximar dela, voltava correndo para o banheiro. Desisti também de fechar a lata e fui direto para a sala. A melhor ideia era deitar no sofá e tentar descansar um pouco daqueles minutos intensos. Ao chegar no sofá me deparei com dois envelopes enormes e vi que eram as provas finais que deveria corrigir e entregar as notas no dia seguinte. Isso poderia fazer mais tarde. Quem desistiu de duas coisas, pode facilmente desistir de três.
Passadas umas duas horas, acordo novamente no susto. Agora no sofá e com o som do interfone. Era o Pereira avisando que tinha uma entrega da loja de móveis. Autorizei a subida. Depois da surra que levaram para conduzir as enormes caixas até o elevador, entrar nele com elas e depois sair, lá estavam os entregadores de frente para a minha porta. Pedi que fossem espalhando pela sala mesmo, pois precisava primeiro pintar o quarto. Aproveitei o momento para pedir um favor:
- Qual de vocês é o montador?
- Montador?
- É, dos móveis. Quero saber se temos como negociar de ao invés de montar hoje, só fazer isso na semana que vem. Ainda tenho de pintar o apartamento.
- Senhor, não foi paga a taxa de montagem. Estamos apenas entregando. A montagem fica por sua conta.
E, depois de sapecar aquela notícia, eles se viraram de costas e foram embora. Revisei então a lista que acabara de crescer. Precisava corrigir as provas, pintar o quarto, montar o armário e a cama no quarto, levar as outras caixas para o quarto, arrumar a roupa no armário, pintar a sala, montar os móveis da sala e trazer o restante das coisas para arrumar na sala. Era muita coisa e não estava preparado para isso. Achei melhor ir para a rua almoçar.
Já sentado à mesa, Adriana me recebeu com o cardápio e uma garrafa de cerveja. Ia pedir inicialmente uma água, como não gosto de reforçar os erros dos outros, aceitei a cerveja. Ao menos estava muito gelada. Perguntei se tinha a língua que comi no outro dia e recebi como resposta que língua somente às segundas. Tudo bem! Terei de mudar todo o meu horário semanal de aulas para às segundas poder comer por lá. Pedi frango à milanesa, purê de batatas e feijão. Adriana retirou o cardápio e gritou para a cozinha:
- SAI UM BAIXA RENDA SEM ARROZ!
Terminado o almoço, duas garrafas de cerveja e um copo de café que mais parecia um balde, refuguei da ideia de voltar para casa e decidi dar uma volta na Praça. Sim, praça com letra maiúscula. Nós, pessoas que moramos no bairro da Tijuca, autointitulados tijucanos, sabemos que existem outras praças na cidade do Rio de Janeiro e pelo mundo também. Todavia, dentro da nossa cultura provinciana, quando nos referimos ao termo praça com letra maiúscula, fica implícito que estamos falando da Praça Sãens Peña, a mais importante de todas e pobre coitado de quem não souber disto. Naquele momento, estava no auge da minha realização pessoal como tijucano. Morava literalmente na esquina da Praça. Morar lá era como um nova iorquino morando de frente para o Central Park, um parisiense com vista total da Torre Einfel ou um argentino trabalhando em um trailer na Praia de Geribá em Búzios.
Andando pela Praça, observando os idosos se ocupando pelos bancos, admirando a infinita quantidade de farmácias, desviando das pessoas entregando panfletos e esquivando de pombos, ouço uma voz familiar me chamar. Era Juliana. Estava com a mãe que conhecia apenas por fotos. Nos cumprimentamos com um longo e apertado abraço, mas com dois beijos de bochechas discretos. Para provoca-la, apertei sua cintura com uma das mãos. Ela confirmou que obtive êxito cravando as unhas nas minhas costas. Ao final do abraço, ela falou baixo no meu ouvido que cumprimentasse sua mãe à distância, pois estava forte demais meu hálito de álcool. Feito o que me foi pedido, conversamos amenidades, expectativas para a festa, sobre estarem tão longe de casa, tudo disfarçando como se fossemos aluna e professor com uma relação dentro do que se espera. Juliana estava acompanhando a mãe em uma consulta médica. Dentre as infinitas vantagens da Praça, muitas salas comerciais ocupadas por médicos era uma das que encabeçavam a lista.
- E você? O que está fazendo por aqui?
- Eu? Eu moro aqui! Você se esqueceu que sou tijucano? Aliás, moro literalmente ali – apontei para o meu prédio. – Meu apartamento é de fundos, mas é ali.
- Bom saber – interrompeu a mãe dela. – Caso reprove minha filha podemos fazer uma visita surpresa.
- Ou pode me visitar em um domingo para almoçar como minha sogra. - Fez-se um silêncio tão constrangedor que, em um momento desespero, tentei disfarçar. – Vejam! Um pombo!
Juliana me olhou com uma expressão tão lamentável que não a condenaria se parasse naquele momento de ter qualquer contato comigo. Já sua mãe, apesar de parecer uma mulher desligada, analisou a cena com o canto dos olhos. Ficou claro que ela reparou a troca de olhares que tive com sua filha, ela me recriminando e eu pedindo clemência. Não restando nada mais, inclusive dignidade, elas se despediram. Juliana me deu dois beijos, agora sem abraço, mas falando ao ouvido que eu era um idiota. Uma obviedade dispensável, convenhamos.
- Tenho uma notícia boa – disse o Pereira assim que adentrei a portaria, - Chegaram suas coisas. Como esqueceu de deixar as chaves aqui comigo, pedi que colocassem no corredor mesmo.
Ótimo! Lá estavam à minha porta geladeira, fogão, máquina de lavar, televisão e adega climatizada. Só itens de necessidade básica, principalmente a adega. Mesmo que tivesse força suficiente para colocar tudo para dentro sozinho, não tinha como entrar. A sala era um depósito de caixas com meus poucos pertences, além das caixas com partes de armários para se montar, um sofá, um colchão e o box da cama. Não tinha mais como escapar, era necessário eliminar alguma coisa da minha lista de afazeres. Aproveitar o quarto vazio para pintar e em seguida poder montar o armário e cama me pareceu uma boa ideia. Geraria espaço para entrar com os eletrodomésticos e a evolução daquele lugar de almoxarifado caótico para uma residência aconteceria com mais naturalidade. O problema seria fazer aquilo sozinho e careta. Da necessidade, surgem as ideias de merda. Tirei a geladeira da embalagem, liguei na tomada do corredor do meu andar e fui para a rua comprar cerveja. Coloquei para gelar no congelador e ao saber disto o síndico quis me matar. Pouco me importava. Prometi para ele que até o final do dia estaria tudo no meu apartamento, inclusive a geladeira. Tive o apoio do Pereira para convencê-lo. Aliás, o Pereira desde o início se mostrou um cara parceiro. Assim que terminou seu turno, ele apareceu lá em casa para me ajudar na pintura e na montagem do armário. Claro que ele bebeu algumas da minha cerveja também. Nada mais justo.
Já tinha passado de duas da manhã quando optei por expulsar o Pereira. Ele relutou alegando que podia me ajudar a pegar as coisas na sala e colocar no armário já montado. Neguei. Já tinha feito muito por mim e era muito tarde. Quase cinco da manhã estava pronto para dormir na minha nova cama que estava no meu novo quarto com minhas coisas no meu novo armário. Antes, fui à cozinha pegar a última lata de cerveja, esvaziando de vez a minha nova geladeira. Tudo novo, vida nova! Estava satisfeito. Meu quarto estava pronto e minha cozinha também. Restava apenas a sala. Instalar televisão, tirar livros das caixas, montar mesa do computador, passar cabos de internet, ligar adega dentre outras coisas. Contudo, além de satisfeito, estava cansado e bêbado. Que ficasse para outro dia.
- ONDE ESTÁ VOCÊ?
Foi a primeira coisa que ouvi ao acordar com o celular tocando e em seguida atende-lo. Era Verônica desesperada, pois já tinha passado de dez da manhã e precisava das notas de prova final para dar o resultado final aos alunos. Não tinha sequer tocado naquelas provas. Disse que estava a caminho e desliguei. Ao me levantar para tomar banho, notei que ainda estava bêbado. Tinha tudo para ser um dia divertido.
- VOCÊ ESTÁ BÊBADO? – Foi assim que Verônica me recebeu assim que entrei em sua sala.
- Claro que não! Por que está dizendo isso?
- Porque você ainda está de capacete.
- Ah – me desculpei e retirei. – Entrei com tanta pressa que nem reparei nisto.
- Você é um idiota! Cadê as notas?
- Eu ainda não corrigi.
- Ah francamente – ela bateu na mesa e mudou sua expressão para indignação. – Eu não sei mais o que fazer com você. Você só me dá trabalho! Chega atrasado para as aulas, nunca cumpre com os cronogramas, é politicamente incorreto, trab...
- Peralá – interrompi a Verônica. – Eu só te dou trabalho? Quantas vezes, diferentemente de outros professores, você recebeu reclamação de aluna dizendo que dei em cima dela? Quantas vezes, diferentemente de quase TODOS os outros professores, você escutou comentários sobre não saber escrever corretamente? Ou quem sabe não usar corretamente qualquer uma das concordâncias? Podemos falar também sobre dominar os conteúdos ministrados em sala? Você já me viu alguma vez, mesmo de ressaca assumida, enrolar em sala? Já recebeu alguma contestação do meu trabalho em sala? Então, vamos falar do trabalho que te dou. Dou muito trabalho, sim, mas perto do trabalho que os outros professores te dão, isso é fichinha e não coloca em risco a duvidosa qualidade do ensino que sua instituição oferece aos alunos.
- Não me venha amenizar as suas merdas exagerando a dos outros. Todos aqui dão trabalho, eu sei disso. Mas não existe trabalho menor. Eu preciso que todos trabalhem fazendo o mínimo de merda possível ou me passarei por frouxa ou incompetente.
- Isso nada tem a ver com incompetência. Você sendo competente ou não, seus professores continuarão parecendo semianalfabetos repetidores do que está escrito no livro sem conseguir falar algo mais profundo. Isso porque é o máximo que você vai conseguir no mercado com esta merda de salário no limite do piso sempre pago com duas semanas de atraso.
- Você acha que não sei disto? Você acha que não tenho consciência disto? Claro que tenho! Pois sou eu que todo mês preciso me virar com a merda de valor de mensalidade que é compatível com o público daqui. SEM CONTAR COM A INADIMPLÊNCIA QUE É GIGANTE! Portanto, não me venha falar de salário. Eu pago o máximo que posso e sei que por conta disto preciso aturar professores de inglês com sotaques de indianos, engenheiros incompetentes dando aulas de física nas coxas, improvisar sociólogos maconheiros militando em sala no lugar de dar aula de história e técnicos de enfermagem que pensam que são médicos dando aula de biologia com a mesma eloquência dos pedreiros que fazem a reforma da minha casa. Pare com esse papinho barato e agradeça ao meu péssimo salário atrasado, pois é o máximo que um professor irresponsável como você vai conseguir no mercado. – Ela se levantou, deu a volta na mesa e com o dedo em minha direção se aproxima. – ISTO AQUI, ESTE ANTRO DE PERVERTIDOS, INCOMPETENTES E PROBLEMÁTICOS É O AUGE DA SUA CARREIRA E ESTOU POUCO ME FUDENDO PARA O QUE VOCÊ ACHA. AGORA ME DÊ AS MERDAS DAS NOTAS QUE VOCÊ NÃO CORRIGIU PORQUE PREFERIU FICAR ENCHENDO A CARA POR AÍ CORRENDO ATRÁS DE ALGUM RABO DE SAIA PARA ENFIAR ESSE PAU FEDENDO A TEQUILA.
- Enchendo a cara? Então olhe isto – eu me levantei e mostrei as mãos para ela. – Está vendo isto aqui? Isso é tinta! Eu virei a noite toda pintando o meu apartamento e não sou obrigado a ouvir você falar que não corrigi as provas por irresponsabilidade minha e bebida. Quer falar de responsabilidades? VAMOS FALAR DA PORRA DA SUA RESPONSABILIDADE DE ME PAGAR O DÉCIMO TERCEIRO SALÁRIO QUE VOCÊ SÓ VAI PAGAR DAQUI A DOIS MESES. SE TIVESSE COMPROMISSO COM ISSO, EU PODERIA TER CONTRATADO ALGUÉM PARA PINTAR MEU APARTAMENTO E DAÍ SOBRARIA TEMPO PARA CORRIGIR ESSA MERDA DE PROVAS. SÓ QUE PARA VOCÊ É CONVENIENTE ME ACUSAR DAS COISAS SEM SABER. TUDO SERIA MAIS DIFERENTE SE ESTIVESSE MAIS PREOCUPADA COM SUAS OBRIGAÇÕES DO QUE COM MEU PAU FEDENDO A TEQUILA QUE É PROBLEMA MEU!
- POIS SAIBA – ela se aproximou e meteu a mão cheia na minha virilha. – QUE SE VOCÊ ESTIVESSE PREOCUPADO COM ELE, AO INVÉS DE PAGAR ALGUÉM PARA PINTAR SEU APARTAMENTO, GASTARIA O DÉCIMO TERCEIRO TOMANDO INJEÇÕES PARA TUDO QUE É DOENÇA SEXUAL.
- VOCÊ É UMA MALUCA!
- VOCÊ É UM IMUNDO!
E sabe-se lá de onde surgiu, estavam eu e Verônica agarrados. Ela enfiando a mão nas minhas calças e eu tirando sua blusa. Antes que pudesse abocanhar um de seus peitos, ela se abaixou e começou a me chupar. Um pouco depois, pelos cabelos, coloquei Verônica novamente de pé e me abaixei para chupá-la. Com o queixo já lambuzado com aquela mistura de saliva minha e fluidos dela que me escorriam pela boca, me levantei, coloquei-a sobre a mesa e começamos a foder. Sim, nada de transar. Aquilo é uma foda por definição. Começamos comigo de pé e ela sentada sobre a mesa com as pernas envolvendo minha cintura. Depois, com Verônica de pé e debruçada sobre a mesa, continuamos com ela de costas para mim. Ela gozou primeiro. Eu precisei de mais alguns minutos. Terminado, ainda em silêncio, os dois começaram a recolher as roupas. Já vestida, Verônica recolheu as provas do chão, jogou sobre a própria mesa e enquanto saia de sua sala disse:
- Você tem meia hora para corrigir esta merda. E me desculpe – ela fez uma pausa, ajeita os cabelos e antes de sair finalizou. – seu pau não fede a tequila.
Terminado de corrigir as provas, saí da sala da Verônica e me deparei com sua secretária que me recebeu com um olhar estranho que talvez suspeitasse o motivo. Ela pediu que lhe entregasse o resultado e o fiz. Em seguida, na sala dos professores, atualizei meus diários, preenchi relatórios e esvaziei meu armário da papelada que vai se acumulando no decorrer de um ano letivo. Eram quase quatro da tarde quando retornei à sala da Verônica. A secretária disse que ela não tinha voltado ainda, mas que ligou e deixou um recado para mim.
- O conselho de classe de início de ano vai ser na última sexta-feira de janeiro. As aulas começam na primeira semana de fevereiro.
- Diga a ela que pode contar comigo e aqui estarei.
Aparentemente com o emprego garantido, fui embora aliviado e com a sensação de que a secretária de Verônica me recriminava com seu olhar cheio de pudor e horror. Já em casa, motivado com os eventos do dia, finalizei a arrumação da casa. Estava tão satisfeito com o fato de enfim morar em um local organizado e com funcionalidade que desliguei o celular, abri uma das garrafas de vinho que comprei voltando da Pavuna e me refestelei no sofá imundo. Sim, ele permaneceria por lá, pois, por algum motivo, me identificava muito com ele e por isto viraria parte da minha história. Tanto que resolvi apelida-lo de Tidus. Mesmo oficialmente de férias, não saí naquela noite. Virei a noite com duas garrafas de vinho me acompanhando enquanto devorava um Hemingway. Estava com todos os meus compromissos em dia. Só me restava aguardar as quarenta e oito horas de ansiedade até a formatura de Juliana.
Acordar às duas da tarde de sexta-feira foi uma boa estratégia para o tempo passar mais rápido. Reparar que não existia uma mensagem sequer da Juliana foi bastante frustrante, preciso admitir. Enquanto almoçava então mandei uma mensagem dizendo que estava contando o tempo para o evento. Não fiz menção de que a expectativa envolvia qualquer contato físico com ela, mas apenas poder ver o resultado final da produção. Tudo balela. Eu queria muito agarrar a Juliana e isso vinha de longa data. Tinha perdido as contas de quantas vezes tentei imaginar a textura da seu boca e o gosto do seu beijo. Será que ela beijava com vontade te agarrando com força ao ponto de perder o ar? Ou era daquelas meninas com o beijo estilo novela de época, devagar, suave e de tão entediante que ficamos pensando no preço do leite no supermercado? Não, ela precisava ser intensa. Mesmo sendo uma menina contida e racional, o beijo precisava ser sua válvula de escape. Ela com certeza devia se libertar na hora de beijar alguém. Provavelmente seria uma força da natureza, um acúmulo de energia de te deixar desnorteado sem saber como manuseá-la. Sim, ela precisava ser assim. Seria muito frustrante caso não fosse.
“Você não tem noção da pilha de nervos que estou. Parece até que vou casar. Só penso no vestido, na maquiagem, no penteado.”
Estava ali uma boa campanha para diminuir o índice de mulheres com o ensino médio incompleto. Pensar nisso me distraiu a ponto de esquecer o quanto queria desfazer o penteado dela, borrar sua maquiagem e transformar seu vestido de gala em um pequeno amontoado de pano no meio da minha sala. Voltei a imaginar no quanto ela estaria linda e constatei que não tinha a menor capacidade de digerir aquela imagem. Terminar o almoço que a Adriana sequer tinha servido ainda era uma opção para ter tempo suficiente para refletir o que responder para Juliana. Quando Adriana me serviu, duas garfadas depois respondi que queria muito ela e não aguentava mais esperar por aquilo.
“Baby, já lhe disse o quanto também estou envolvida nesta história e o quanto te quero. Só que neste momento não quero distrações. Tudo que estou pensando é na formatura. Quando começarmos de vez, isso deixará de ser uma distração e você passará a ocupar de vez a minha cabeça.”
Sem saber o que dizer, deixei Juliana sem resposta. Terminei o almoço, passei no mercado e levei algumas cervejas para casa. Abri uma e coloquei as demais na geladeira. Bebi com calma enquanto ouvia as músicas de uma banda que tinha descoberto recentemente. Assim que a garrafa acabou, peguei no sono. Eram mais de quatro da tarde de sexta-feira e só tinha passado duas horas acordado. Não podia ser mais feliz e até que a felicidade durou algumas horas. Tarde da noite acordei assustado com alguém esmurrando minha porta. Tatiana!
- Baby, preciso de dois favores seus.
- Algum deles envolve pedir dinheiro emprestado para uma passagem só de ida para a Guiné Bissau?
- Você morreria de saudades, daria a bunda na rua para conseguir dinheiro para outra passagem e iria atrás de mim – ela entrou e começou a contemplar a nova aparência da casa. – Gente, mas isso agora parece uma casa de pessoa normal. Foi despejado?
Sabendo como o assunto seria tedioso, peguei a garrafa de cerveja vazia ao lado do sofá e fui para a cozinha deixando Tatiana falando sozinha. Ela foi para o quarto e de lá, aos berros, fazia comentários sobre o quanto estava estupefata com a drástica mudança e melhoria no apartamento. Confesso não saber o por que dos gritos. O apartamento era tão pequeno que mesmo da cozinha era capaz de ouvir os pentelhos dela crescendo enquanto estava no quarto. Fui para o quarto com uma garrafa de cerveja e um copo. Servi um pouco para ela no copo e bebi o resto no gargalo. Aproveitei então o seu silêncio enquanto dava um gole para perguntar quais favores estava precisando. Ela tirou uma enorme mochila das costas, jogou sobre a cama e apontou para ela como se devesse concluir algo com aquilo. A desgraçada era uma mula no sentido animal do termo. Ela vivia carregada com tralhas nas costas. Anos de amizade e nunca a vi sem uma mochila ou bolsa grande. Em outra vida ela foi nômade provavelmente. Continuava sem entender.
- Mas você é burro mesmo! Tenho uma festa aqui perto hoje. Preciso usar sua casa para me arrumar e depois voltar para dormir.
- Que tipo de festa?
- Que diferença faz? – Assim que terminou de me perguntar, fiquei parado em silêncio olhando para ela que então percebeu e prosseguiu. – Aniversário de uma amiga. Nada de especial. Vai ser em um bar aqui perto.
- Ok, eu vou!
- Ai merda!
Enquanto nos arrumávamos, ela ia perguntando da minha relação com a Juliana e a expectativa sobre a formatura que estava por vir. Como de hábito, respondi tudo com muito deboche, mas não ocultei fato algum. Mais uma vez ela declarou o quanto estava fã da Juliana. Acho que essa afirmação dela era verdadeira apenas em parte, a outra parte seria apenas para me irritar. Era comum ficarmos uma semana, às vezes duas, sem nos encontrarmos. Quando acontecia, colocávamos um relatório em dia. Ela riu e ficou pasma com a história da Verônica. Não necessariamente nesta ordem. Já arrumados, seguimos para a festa que de fato não era muito especial. Um bar, uma mesa enorme com vinte e poucas pessoas, falatório alto e bebida na mesa. Eu saberia lidar com isso.
Chegado o tão aguardado sábado, era esperado que acordasse cedo eufórico como uma criança em uma manhã de Natal. O que aconteceu de fato é que recobrei a consciência já ao final da manhã com vozes na minha sala. Quando dei por mim, estava deitado no Tidus e à minha frente Tatiana se despedia de uma menina simpática e jeitosa. Ela, antes de sair, notou que tinha acordado e me mandou um beijo de forma carinhosa. Assim que Tatiana fechou a porta, perguntei-lhe quem era, pois o rosto não me era estranho.
- Seu idiota, era a prima da minha amiga aniversariante que você engoliu no bar e no elevador do seu prédio.
- Oxi – despertei rapidamente de tão surpreso que fiquei com aquela revelação. – E por que você não dormiu aqui na sala para que eu ficasse com ela no meu quarto?
- Porque você precisa de foco. Hoje vai recomeçar sua vida com a Juliana. Ela não merece isso.
- De onde você tirou que pode avaliar algo. Ei – tentei me levantar gritando do sofá, mas tudo que fiz foi erguer um dos braços. – Você poderia chamar a mocinha de volta?
- Chame você. Basta gritar o nome dela.
- Ei – fiz nova tentativa de me levantar e fracassei mais uma vez. – PRIMA DA ANIVERSARIANTE! Ah, mas que merda. Você sempre fazendo da minha vida um inferno.
- Eu? Eu, seu desgraçado? Se fosse por mim, estaria até agora me agarrando com um menino gato que conheci ontem. Mas não! NÃO! Tive de voltar para evitar que você fizesse merda. E, para piorar, ao invés de me deitar na cama e dormir, fiquei quase duas horas ouvindo a Isabel perguntando sobre você e comentando como foi legal ter te conhecido. É, o nome dela é Isabel.
- Hum, Isabel! Que coisa!
- Que coisa? Que coisa? Peraí! Levanta! Vai! Levanta!
- Levanta?
- É! Levanta! Fique de pé!
Com muito esforço e pouca velocidade me postei de frente a ela no meio da sala. A cena era patética. Lá estava eu de cueca, pau duro de vontade de fazer xixi, descabelado e com o que pareciam farelos que estavam perdidos no sofá presos na barba.
- Agora veja isso – Tatiana falou apontando para mim. – Que coisa! Como pode, em uma noite, isso amolecer uma menina a ponto de ficar babando no meu ouvido enquanto tento dormir?
- Ora, precisava me levantar para me humilhar? Não podia apenas destacar minha unha inflamada do dedão? Seria suficiente para provar seu ponto.
- É isso! Esse é o problema! Você vem com toda essa eloquência. Sua agilidade no raciocínio para responder coisas divertidas, as meninas acham graça e pensam que você é um fofo. Não, você não é um fofo! Você é um idiota articulado!
- Desde quando você tira partido de outras pessoas contra mim? Tudo isso porque ela não te deixou dormir? Vai lá. Volte a dormir, descanse essa cabeça e depois volte a me amar.
Ela ficou mais irritada ainda. Não era essa a questão. Estava divorciado há menos de duas semanas e já tinha feito mais merda que muita gente em uma vida inteira. Ora, não é culpa minha. Cada um tem o seu talento. E convenhamos, se ela tivesse optado ficar de fora, estaria eu no quarto com o sono abalado pela prima da aniversariante cujo nome me esqueci novamente. Sem mencionar a possibilidade de ela estar com o tal rapazinho que comentou.
- Não, seu idiota! Não é apenas isso! É o fato de você estar prestes a iniciar um relacionamento já fazendo merda.
Estava claro desde o início que Tatiana tomaria partido da Juliana. Ela se declarava fã dela com motivos e era sinal suficiente para cortar detalhes, evitando assim que ela ficasse me censurando. Agora era tarde demais. Ou a convencia a voltar a carregar a bandeira do meu time, ou teria de ser mais cuidadoso ao compartilhar detalhes da minha vida para ela. Sim, porque simplesmente andar na linha em um primeiro momento me parecia totalmente absurdo.
- Estou com fome.
- E eu estou com sono e ressaca.
- Bem, como a parceria sono e ressaca é algo comum na sua vida, acho que consegue me acompanhar enquanto como algo na rua.
- E?
- Você não consegue dormir e se recuperar da ressaca comigo repetindo no seu ouvido que estou com fome.
Com tal argumento arrebatador, ela me convenceu a sair. No restaurante, recebidos euforicamente pela sempre sorridente Adriana, nos sentamos e pedimos uma cerveja. Corrigindo, eu pedi. Tatiana resmungou, mas depois bebeu com se nada tivesse acontecido. Algumas cervejas depois e almoço devorado, voltamos em passos lentos para minha casa. Tatiana, que já demonstrava inquietude com meu silêncio, resolveu perguntar se algo me incomodava ou era apenas mau humor de poucas horas de sono. Sim, tenho personalidade de bebê quando o assunto é relacionado ao tempo dormido. Tenho também personalidade de bebê para outras situações, mas não vem ao caso. Não era mau humor, estava apreensivo mesmo. Tanto que, ao chegar em casa, dispensei a proposta de Tatiana de acompanha-la na cerveja. Deitei-me no Tidus e, depois de dez minutos refletindo o que esperar e o que fazer mais tarde, peguei no sono.
Acordei com uma sala escura e fria. Pelo barulho, chovia e muito. Ao me levantar, vejo a porta do meu quarto fechada. Provavelmente Tatiana foi embora. Vou à cozinha, abro a geladeira e vejo o que tem nela. Cervejas, duas garrafas de vinho branco para dias de muito calor ou de pouco bom senso, meia garrafa de rum, requeijão, frios embalados em plástico, uma fruta que espero muito ter sido esquecida pela Tatiana, mas nada do que procurava, algo de atitude atitude. Sim, álcool é coragem, mas não é atitude. Talvez um pouco de química clandestina me ajudasse naquele momento. Fui ao quarto ver o que ainda tinha nas minhas gavetas.
- QUE PORRA É ESSA?
Lá estava Tatiana com um ferro, que não tenho a menor ideia de onde surgiu, improvisando sobre a minha cama uma tábua de passar. Pendurado na porta do meu armário estava o paletó do meu terno. Ela estava terminando de passar a calça e ainda tinha uma camisa branca ao lado provavelmente esperando sua vez.
- O que você esperava? Que ia te deixar sair todo amarrotado como sempre? Claro que não! Admito que tentei dormir, mas seu ronco não deixou. Então fui para rua comprar um ferro de passar e uma tábua. Não tinha dinheiro para os dois, comprei só o ferro. Agora estou aqui te deixando arrumadinho para recomeçar sua vida.
- E, pelos meus cálculos, você demorou quatro horas para passar um paletó e meia calça?
- Não, idiota. Demorei mais do que o normal na rua. Dei uma volta, vi várias coisinhas legais  para a sua casa nessa feirinha que tem aqui na praça e depois voltei. Quando cheguei, já estava de lado sem roncar, então dormi. Tem meia hora que acordei. E pode parando de reclamar que estou lhe fazendo um favor.
Favor? Eu sequer sabia se iria. A cada minuto que refletia sobre como seria, mais tinha certeza que ficar em casa era uma boa ideia. Ficar comportado, pois pais e mães poderão me julgar? Melhor ficar em casa. Ter de fazer social com pais e mães com assuntos rasos e insossos? Fico então em casa. Agir de maneira contida em um evento open bar? Acho que ficarei em casa. Encarar a Verônica depois do incidente na sala dela? Minha casa é o local mais seguro. Estava chovendo muito, não poderia ir de moto, então correria o risco de parecer um almofadinha chegando de táxi? Por favor, uma porção de travesseiros para me acompanhar no sofá de casa.
- E por conta dessas desculpas esfarrapadas você vai deixar de ver a garota que ocupou sua cabeça nos últimos meses na sua versão mais linda? Sem maquiagem e com a cara toda amassada de sono, você ficou babando nas fotos dela provando o vestido. É sério que vai perder isso? Você acha que consegue lidar com as fotos amanhã pela rede social? Você acha que ela vai querer alguma coisa com você se der um furo deste logo hoje? Bem, eu não sei o que você acha, mas sei o que EU ACHO. Eu acho que você está sendo burro! Eu sei que você é um idiota, irresponsável e imaturo, mas nunca pensei que usaria o adjetivo burro com você de verdade.
Saí do quarto e a deixei falando sozinha. Não consegui sequer pensar em uma resposta cretina para disfarçar meu desconforto com o pequeno esporro que tinha acabado de levar. Estava mesmo acuado e não sabia o que fazer. Não eram desculpas esfarrapadas. Só de pensar em cada uma das que citei, minhas mãos ficavam suadas e trêmulas. Algumas pessoas costumam parar de frente para a geladeira aberta para refletir. Eu tento fazer isso em alguns momentos, mas, para funcionar mesmo, fico de frente para minha estante de livros. O que Bukowski diria? Como Hemingway lidaria com isso? Qual seria a saída de Kerouac? Droga! O primeiro que me veio aos olhos foi o psicopata suicida do Hunter Thompson. Isso não vai dar muito certo.
- E escute aqui – Tatiana interrompeu meus pensamentos adentrando à sala. – Eu não estou pedindo para se comportar, nem para fazer social com os pais. Por mim, você enche a cara, vomita no pé de uma das mães e limpa a boca na gravata de um pai. Pouco me importa a Verônica. Diga para ela que foi uma foda única, errada, que nunca irá se repetir e ela que lide com isso. Mas antes disso tudo, você precisa lidar com outra coisa. Precisa ver a Juliana. Vá e antes de tudo, procure apenas por ela. Olhe para ela linda do jeito que estará e depois saberá perfeitamente como agir o resto da noite.
- Isso não é uma frase de um filme da Julia Roberts?
- Seu idiota, não estrague o meu momento profundo – ela se aproximou de mim, apertou minhas bochechas debochadamente e prosseguiu. – Esse medinho que está te consumindo por dentro é a responsabilidade de começar tudo novamente. Isso é comum em pessoas adultas. Acredite em mim. Então, vá tomar um banho enquanto acabo de passar sua roupa. Faz o que a amiguinha está pedindo uma vez na vida.
Ok, decidi que iria fazer. Fui antes até a gaveta procurar algo para me dar a tal atitude necessária e Tatiana interviu mais uma vez. Limpo e puro no primeiro momento, ela pediu. Ela estava começando a me irritar. E ela sabe bem que só me irrita quando tem razão. Entrei então no banho e quase uma hora depois estava no meio da minha sala de terno, gravata e sapatos engraxados. Que morte patética! A última vez que estive assim foi no meu casamento e, portanto, podemos concluir que isso não dá muita sorte, não é mesmo? Sem muitas opções, me despedi de Tatiana:
- Estou tão orgulhosa. Meu menino está virando um hominho.
- Cala a boca, sua idiota. Ali em cima da estante tem uma cópia da chave daqui de casa para você. Tranque a porta quando sair. E espero que saia, pois não quero te ver por aqui quando voltar.