domingo, 2 de abril de 2017

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: 217 dias

Neguinha
Já tinham se passado duas horas além do horário habitual que o restaurante fechava. Na cozinha, os funcionários encerravam a limpeza e os preparativo para se iniciar um novo turno no dia seguinte. No vasto salão, quase todas as mesas arrumadas, faltava apenas uma. Faltava a mesa que até algumas horas atrás era a cabeceira de uma enorme sequência de mesas perfiladas com quase trinta convidados. Tinha sido uma noite incrível. Luis Antonio reunira amigos e familiares para comemorar a entrada na aposentadoria. Ele estava com quase 68 anos vida, sendo 40 deles dedicado à odontologia. Dono de uma das agendas mais disputadas da Urca, ele fechou seu consultório que vivia lotado de pacientes que não pensavam na dor, mas apenas em serem tratados por umas das mãos mais leves da categoria. Em uma reportagem veiculada numa revista dominical, foi apelidado de o doutor da broca de plumas. Luis Antonio era mais do que um homem com mãos leves, quase imperceptíveis, no cuidado dos seus paciente. Ele era também um homem tranquilo de fala suave. Conversar com ele, era quase que receber um cafuné.
- Meu bem, precisamos ir. O gerente já está começando a olhar atravessado para nós.
- Sim, querida, precisamos mesmo. Deixe-me apenas terminar esta última taça de vinho. Esta taça... Fernando! – Luis Antonio fez uma pausa para chamar a atenção de seu único filho que cochichava algo ao ouvido da esposa. – Fernando, escute, por favor, meu filho. Esta taça é a mais especial de toda a noite. Oficialmente, esta é a última taça de vinho que beberei enquanto ainda cirurgião-dentista praticante. Ao chegar em casa, meu bem, abriremos aquele português que está escondido ao fundo da adega. Será o meu primeiro vinho como Luis Antonio, o aposentado.
- Meu bem, você não acha que... – Maria Helena, sua esposa começava a falar, quando foi interrompida pelo filho Fernando.
- Mãe, deixe o coroa em paz. Deixe ele encher a cara. Agora ele é Luis Antonio, o aposentado. Adorei isso pai. Ficou uns quinze anos mais velho. Estou até imaginando aqui o próximo destino de viagem. Nada de Paris, Londres, Nova York ou Munique. Esses eram o lugares que Luis Antonio, o cirurgião-dentista ia para impressionar os amigos. Agora, Luis Antonio, o aposentado, vai para Conservatória, Penedo, Raposo, Gramado... – nesse momento, Maria Helena interrompe seu filho.
- Pare de bobagens, meu filho. Pois saiba, que no início do nosso casamento, quando estávamos apertados, íamos muito para Gramado. Não era meu, bem?
- O gerente daquela pousada nos conhecia por nome e sobrenome – Luis Antônio prosseguiu. – E saiba, Fernando, que você quase foi feito lá. Por sorte, naquele aniversário de casamento, seus avó nos deram de presente uma viagem para Bariloche.
- Talvez isso explique eu sentir calor com tanta facilidade. – Fernando provocou o pai. – Então, me digam, qual será o destino da viagem para comemorar? Precisa ser algo diferente.
- Por enquanto, não vai ter viagem, meu filho. Combinei com sua mãe que isso ficará para o final do ano. Passaremos o Natal pela primeira vez fora do país e longe de vocês. Será estranho e um pouco triste, mas achamos que será uma experiência nova válida. Vou aproveitar essa nova fase da minha vida para dar início a um antigo sonho meu. Não me peçam para antecipar. Quero que a surpresa seja total. Sábado, faremos um almoço lá em casa. Por favor, apareçam. O tio Valter e a tia Ana estarão com as crianças. Vai ser lá que anunciarei... ou melhor dizendo... mostrarei a surpresa.
No sábado, estava a família reunida no jardim da entrada da bela casa em que Luis Antonio e Maria Helena moravam em um condomínio fechado na Barra da Tijuca. Quando os convidados chegaram, Luis Antonio já tinha saído. Passaram duas horas e nada. Além de ansiosos, já estavam com fome. Petiscos de frios e torradinhas acompanhadas de pastas não davam mais conta. Duas garrafas de vinho foram esvaziadas. Os assuntos tinham morrido e já estavam na fase dos lugares comuns.
- Minha nossa senhora, que barulheira é essa?
Maria Helena se espantara com um grave barulho que se aproximava. Nem era necessário o seu comentário. Todos eram capazes de ouvir quando ainda estava distante e, pelas expressões, estavam tão assustados quanto ela. O barulho que à distância já era impressionante, foi se aproximando. Quando chegou ao seu volume máximo, não se afastou mais. Tinha parado. Os familiares se entreolhavam. Todos tinham entendido que o som estava em frente a porta da casa. Antes que alguém pudesse tomar qualquer iniciativa, o portão da garagem se abriu tornando o som mais alto ainda. Os poucos segundos de suspense que se criou foram quebrado com a entrada de Luis Antonio montado em um moto negra esporrenta. Era uma Harley-Davidson modelo Fat-Boy com um guidão alto. A moto era toda negra, grande e imponente. O espanto que antes era apenas com o barulho, agora somara-se à cena.
- Minha nossa senhora, meu bem.
Maria Helena se levantou espantada acompanhada dos familiares que calados seguiram na direção de Luis Antonio. As reações foram diversas. Fernando, o filho, acompanhado do tio Valer se concentraram em comentários elogiando a moto. Maria Helena e sua cunhada, tia Ana, se atentaram ao suposto grau de irresponsabilidade que envolvia aquela aquisição. Debora, a nora, foi a única que não se preocupou com a novidade. Sua atenção foi exclusiva para o sogro. Aliás, o sogro protagonizava uma cena bem contraditória. Ele estava vestindo uma calça social bege e uma camisa xadrez de botões e mangas curtas enquanto montava uma moto típica de bad boys que usam couro, não fazem a barba, odeiam mangas em camisas e cheiram à cigarro e bebida.
- Tio, você está muito vermelho. O sol te castigou nesse passeio de moto – constatou a nora.
- Vermelho? Mas o capacete é fechado. Nem fico com o rosto exposto ao sol.
- Tem razão – ela concordou. – Inclusive, seus braços estão normais. Apenas seu rosto que está vermelho. Muito vermelho. Esse capacete te sufoca?
- Não, nem um pouco. Ele é bem confortável. Isso deve ser por conta de um aborrecimento que tive no caminho para cá. Um carro fez um movimento inapropriado quase provocando acidente comigo. Acabei me desentendendo com o motorista em uma breve discussão.
- Mas, tio, a ponto de ficar vermelho desse jeito?
- Foi uma grande lambança que aquele irresponsável fez.
A moto foi tema de quase toda a tarde do almoço. As conversas não fugiam muito das preocupações da esposa e irmã, nem dos comentários do cunhado e filho sobre mecânica, estilo e velocidade. O ápice foi quando Luis Antonio disse que a moto tinha um nome, Neguinha. Obviamente que todos resolveram encarnar nele. Com muito esforço, sob uma chuva de deboches, ele explicou que o nome já veio com a moto. Neguinha era o nome dela já com o primeiro proprietário e, na cultura dos motociclistas, não se muda o nome de uma moto. Tio Valter insistiu na troca do nome ou, até mesmo, extinguir essa ideia que ele considerava patética.
- Não, Valtinho! Não se pode cometer uma heresia dessas. Nenhum dos outros donos fez isso. Não seria eu quem quebraria uma tradição deste tipo.
- Outros donos? – Tio Valter perguntou com uma mistura de espanto. – Quantos donos essa moto já teve?
- Eu sou o sexto.
- Veja bem, Luis Antonio. Eu não entendo muito de moto. Aliás, a única coisa que entendo de moto é que elas têm duas rodas e, por isso, foram feitas para cair. Todavia, de carro eu entendo e sei que, um carro que pula muito de dono em dono, é dor de cabeça na certa. Na maioria das vezes, o carro tem algum problema crônico que nenhum mecânico consegue resolver.
- Ora, Valtinho, estamos falando de uma Harley-Davidson. Não é possível construir uma frase que contenha ao mesmo tempo Harley-Davidson e problema crônico. Não podemos nos esquecer que, não bastante, é uma Fat Boy carburada. Um sonho moderno dos fãs da marca.
- Pois então, Luis Antonio – Tio Valter tenta ser contundente em seus argumentos. – Agora que não faz sentido mesmo. Como um sonho de consumo troca tanto de mão para mão? Essa moto não tem nem quinze anos. E sem falar que é meio estranho que, num meio em que se apegam aos nomes às motos, não se apeguem à própria trocando rapidamente. Ainda acho que tem algo de estranho no ar.
Luis Antonio não conseguiu argumentos para acabar com a desconfiança do Tio Valter. Em contrapartida, o próprio, por não entender de mecânica de motos, não pode comprovar para o cunhado que a moto era uma furada. Maria Helena, que já não estava gostando nem um pouco da novidade, cortou a discussão quando ainda era uma conversa apenas.
Ainda perdido sem ter o que fazer com seus dias livres de aposentadoria, Luis Antonio não fazia outra coisa a não ser passear com seu novo brinquedo pela orla da praia da Barra da Tijuca. Ia comprar pão de moto, ia ao banco de moto, ia ao mercado comprar poucas coisa de moto. Era ele e a moto para cima e para baixo. Duas semanas inteira de relacionamento solteiro com a Neguinha. Ele insistia muito, mas Maria Helena se negava a andar naquilo que ela considerava ser um veículo extremamente perigoso. Ainda mais na idade dela que não permitia muitas surpresas, ela enfatizava sempre ao final. Contrariado com a insistente relutância da esposa, Luis Antonio seguiu para a terceira semana com seus passeios diários solitário. Sua esposa começou a perceber que, aquilo que ele chamava de falta de companheirismo, estava o aborrecendo. Ela já tinha notado antes que, a cada dia que passava, ele chegava mais vermelho. Sua desconfiança era igual à de sua nora, excesso de sol. Contudo, se tivesse prestado atenção à conversa dos dois no primeiro dia, passaria a desconfiar de outra coisa.
Com quase um mês de Neguinha na sua casa que Maria Helena sucumbiu aos pedidos, agora um pouco acalorados, de Luis Antonio. Era uma noite de segunda-feira. Para ela, a orla estaria sem trânsito algum e se sentiria mais segura. Não foram necessários muitos minutos para que a sua sensação de segurança terminasse. Ainda dentro do condomínio, com chão de paralelepípedo, Maria Helena, sem intimidade com o banco do carona e com poucas opção de onde se segurar, sentiu um pânico súbito. Pediu para que Luis Antonio retornasse. O marido se negou. Ordenou que parasse de frescura e se segurasse direito nele.
- É só se agarrar em mim como aquelas periguetes de rabo empinado.
Maria Helena estranhou o linguajar de Luis Antonio, mas nada comentou, pois seu pânico tinha tomado conta de sua mente. Tudo que ela queria era se segurar em algo e ter a sensação de que não seria deixada para trás em um chão áspero. Ao sair do condomínio, com um asfalto nivelado, o sacolejo da moto quase zerou. Maria Helena pode aos poucos entender como se posicionar e retomar o controle de si. Enquanto isso, Luis Antonio seguia na direção de um retorno que sairia direto na pista da praia. Ele precisou esperar um carro passar para entrar na principal. Maria Helena ainda recuperava o fôlego quando o momento de sair foi aproveitado por Luis Antonio arrancando em alta velocidade, dando um forte tranco na esposa. Ela quase, literalmente, ficou para trás. Por sorte, teve reflexos suficientes para abraçar por completo o marido. Ainda assim, seu movimento brusco de tentar se manter na moto acabou desestabilizando Luis Antonio, logo a moto também.
- PORRA, MARIA HELENA – Luis Antonio gritou assim que conseguiu retomar o controle da moto. – QUER NOS JOGAR NO CHÃO? QUE MERDA!
O que era no início um medo instintivo por moto, virou um colapso nervoso. A cabeça de Maria Helena deu curto circuito. Era o eminente risco de cair de uma moto em alta velocidade que ela tinha acabado de escapar. Era o grito de Luis Antonio, algo que ela nunca ouvira em toda a sua vida com ele. Maria Helena sequer conseguia falar de tanto que se tremia e chorava. Com muito esforço, ela pediu para que ele encostasse. Coisa que ele fez visivelmente consternado.
- Por que você está chorando, Maria Helena? – Luis Antonio perguntou assim que ela tirou o capacete e revelou um rosto em total estado de caos. – Você que quase nos derrubou. Mesmo assim eu contornei tudo. Pare de dramas. Foi apenas um susto.
Maria Helena apenas chorava, tentava recuperar o ar e limpava o rosto que estava lambuzado num mix de lágrimas, saliva e coriza. Luis Antonio seguia a recriminando numa postura agressiva jamais vista antes. A esposa permanecia na intimidade do seu pânico. Nada ao seu redor roubava a sua atenção, nem o seu marido em um estado estranhamente novo. A cena perdurou por quase meia hora, até que Maria Helena, com visivel pouco fôlego, se levantou dizendo que ia chamar um táxi.
- Não, não vai chamar taxi porra nenhuma – Luis Antonio foi contundente mais uma vez numa versão inédita da sua personalidade. – Você é minha esposa! Você saiu comigo! Você está comigo! Você volta comigo!
Ainda muito nervosa, Maria Helena implorou ao marido que a deixasse ir de táxi para casa. Ela argumentou que estava muito nervosa para conseguir voltar com segurança numa moto. Disse também que ele estava bastante irritado. Para ela, cada um voltar de uma maneira diferente seria melhor para espairecerem as cabeças.
- Não, não vou admitir isso! Ou você volta comigo, ou você nem volta.
Maria Helena estava exausta psicologicamente. Por mais que quisesse, não tinha condições mentais, e talvez físicas, para prolongar aquela conversa. Não relutou. Levantou-se da beira da calçada, colocou o capacete e se posicionou ao lado da moto esperando por Luis Antonio para subir depois dele. Com os dois na moto, Luis Antonio seguiu para casa. Desta vez, sem forçar muito a velocidade. No meio do caminho, um carro trocou de pista obrigando Luis Antonio a frear. Nada muito brusco. Mesmo assim, ele, assim que teve oportunidade, colocou a moto em movimento novamente e emparelhou com o carro:
- Ôh, seu filho da puta – Luis Antonio disse para o motorista do carro com o dedo em riste. – Não tem retrovisor nessa merda, não?
- Qual o seu problema? – o homem rebateu. – Você estava longe. Ou vai dizer que é o dono da rua e preciso da sua autorização para mudar de pista.
- Você vai precisar de autorização para conseguir uma cirurgia de reconstrução facial se enfiar essa merda de carro novamente na minha frente. Abre o seu olho – terminada a ameaça, Luis Antonio não deu tempo de resposta para o homem e seguiu em frente.
Já em casa, Maria Helena cogitou ligar para o filho. Desistiu. Pensou em ligar para a cunhada. Refugou. Para ela, compartilhar aquele momento poderia piorar mais as coisas. Talvez Luis Antonio reagiria mal àquilo e voltasse a se descontrolar. Ela, de fato, odiara aquela cena que viu pela primeira vez. Todavia, não queria ver novamente. Maria Helena cogitou então que sepultar aquele acontecimento seria a medida mais prudente.
Foram mais algumas semanas com Luis Antonio fazendo seus passeios solitários na Neguinha. Esporadicamente, ele fazia um convite e Maria Helena, numa posição bem passiva, negava inventando algo mais importante a se fazer.
Certa tarde, o telefone da casa tocou. Maria Helena estava só e então atendeu. Era seu filho Fernando. Ele começou a ligação pedindo para a mãe ter calma. Geralmente isso deixa as pessoas mais nervosas ainda. A mãe entrou em pânico. De imediato, pensou no pior. Luis Antonio sofreu um grave acidente, ela perguntou sem pestanejar. O filho negou de imediato para acalmar a mãe. Não, nada de acidente, ele disse. Papai estava preso, Fernando completou na sequência. Maria Helena perguntou em qual delegacia, o filho respondeu e em seguida ela desligou partindo em disparada.
Assim que chegou à delegacia, Maria Helena foi recebida pelo filho que não quis entrar em maiores detalhes. Ele preferiu deixar por conta do delegado que a esperava em sua sala. Simpático, ele cumprimentou Maria Helena, tentou deixá-la confortável apesar das insistentes perguntas da esposa.
- Não, senhora, seu marido não vai para a prisão. Ele apenas foi detido por vandalismo e tentativa de agressão. Por ele não ser primário, uma fiança, acredito, será suficiente. Como ele não tem ficha, pesquisei um pouco sobre ele e fiquei impressionado como é a típica situação que jamais esperaria de um homem como seu marido. Ele está passando por alguma turbulência na vida particular, profissional ou sei lá mais o quê?
- Não, seu delegado – Maria Helena respondia quando foi interrompida pelo delegado.
- Freitas, senhora. Pode me chamar de Freitas.
- Desculpe – Maria Helena prosseguiu. – Não, Freitas. Quero dizer, estava tudo bem, sim. Estava tudo na perfeição que sempre foi viver com o Luis Antonio. Daí, foi só ele se aposentar que as coisas meio que saíram do controle. O meu bem começou a se tornar um homem impaciente, grosseiro em alguns momentos e até, digamos, sofisticou seu vocabulário com diversos palavões.
- O que é isso, mãe? – Fernando se assustou com o depoimento da mãe. – Não estou sabendo disso. Papai anda nervoso?
- Bastante, filho. Gritou comigo outro dia. Falou palavrões. Chega irritadiço da rua. Não sei, mas acho que o tempo ocioso da aposentadoria está fazendo mal a ele. – Maria Helena fez uma pausa para segurar um choro que ficou evidente para todos e depois se direcionou para o delegado. – Freitas, o que o Luis Antonio fez?
- Pois bem, senhora. Segundo relatos do próprio, ele foi fechado por um ônibus que quase provocou um grave acidente. O motorista do ônibus disse que não foi nada de especial. A moto sequer caiu no chão. Aparentemente, ele parou a moto na frente do ônibus e começou a discutir com o motorista. De repente, ele se descontrolou mais do que já estava e começou a quebrar os retrovisores, janelas e para-brisa do ônibus.
- Meu senhor, Freitas! Como que o meu bem conseguiu quebrar tanta coisa?
- Ele usou um martelo, senhora.
- Um martelo?
- Meu senhor! Minha nossa senhora! De onde ele tirou um martelo?
- Depois de muito conversar com ele, descobrimos que ele já vinha há alguns dias pilotando a moto com um martelo preso à perna?
- Meu pai andando com um martelo? Seu Freitas, isso não faz sentido nem na época que ele era dentista. Ele nunca usou um martelo na vida. Qual a razão disso?
- Vejam bem – Freitas demonstrou desconforto em prosseguir. – É comum em alguns moto-clubes que seus integrantes andem acompanhados de algo para se defender de desavenças.
- Mas, papai não é de moto-clube. Ele é apenas um dentista que dirige uma Harley-Davidson.
- Bem – Freitas estava muito desconfortável com o que ia dizer. – Algumas pessoas, quando compram essas motos, ficam sob influências de filmes, mitos e acabam sob sugestão de personagens. O martelo, por exemplo, por muito tempo foi conhecido como o artifício usado por membros do moto-clube Hells Angels. Vai ver ele leu algumas coisas sobre, viu uns documentários e pensou que, agora que ele tem uma Harley, ele virou um cara mau. Isso acontece. Acreditem!
A conversa se prolongou por longas horas até que conseguissem determinar de fato o que estava acontecendo. Exaustos e sem opções, desistiram. Luis Antonio foi solto após pagamento de uma fiança. Em seguida, pai, mãe e filho seguiram para a casa do casal. Lá chegando, Tio Valter os aguardava. Eles ficaram surpresos porque não tinham comentado coisa alguma com familiares, apenas os três estavam sabendo daquilo. Tio Valter parecia ansioso para contar algo, mas ao ver a péssima aparência dos três, se conteve e perguntou o que tinha acontecido. Conforme Fernando ia contando para o tio detalhes do evento, Maria Helena e Luis Antonio ficavam mais abatidos. Parecia que um tragédia tinha assolado a família. No meio da história, a esposa de Fernando, Debora, chegou e, mesmo pegando a história pela metade, não parecia nem um pouco surpresa. Ao final, quando Fernando terminou de contar o acontecimento, tio Valter abriu um enorme, soltou uma risada, bateu as mãos algumas vezes e se jogou de pé sobre o sofá.
- Você também enlouqueceu, Valtinho? – Maria Helena perguntou.
- Não, não enlouqueci. Aliás, vocês iriam dizer exatamente isso caso não tivesse acontecido esse surto do Luis. Estou feliz que aconteceu, de verdade. Claro que estou feliz também que ninguém se feriu. Mas assumo que isso acontecendo apenas ficou mais fácil de confirmar o que eu vim contar para vocês.
- Valtinho, por favor – Maria Helena o interrompeu. – Nosso dia foi muto cansativo. Não temos condições de lidar com voltas e serpenteios. Vá direto ao ponto, por favor.
- Ok, é justo – Tio Valter desceu do sofá, se recompôs e prosseguiu. – Pois bem, vamos lá. Desde aquele almoço em que você, Luis Antonio, apareceu com a tal Neguinha que fiquei inquieto com a tal história de a moto ter rodado na mão de tantos proprietários. Principalmente pelo que falamos naquele dia. Nunca deu problema, é uma moto desejada por todos, os que compram costumam ser fiéis às elas. Sim, sentia que tinha algo de estranho no ar. Vocês sentiram também, mas não perceberam. Luis Antonio dava sinais de mudança de personalidade. Ele começou a ficar uma pessoa irritadiça. Vocês viram com o evento de hoje. Maria Helena vivenciou um momento de pico na rua, segundo acabaram de me contar.
- Eu também notei – Debora, a esposa de Fernando, pegou a palavra.
- Você também – Tio Valter reagiu com surpresa e empolgação ao mesmo tempo. – Que ótimo! Mais pessoas para sustentarem o que estou para contar.
- Peraí – Fernando interrompeu. – Quando que você percebeu algo, Dab?
- No primeiro dia. Ele chegou muito vermelho. Perguntei o motivo e disse que tinha se aborrecido no trânsito com algum motorista. Ninguém notou. Apenas eu notei porque estranhei ele estar vermelho. Pensava que era...
- VERMELHO DE SOL – Maria Helena falou junto com a nora e depois seguiu só na fala. – Sim, ele voltava dia a pós dia sempre vermelho. Achava que era sol, mas ele nunca se bronzeava ou descascava. Claro, meu bem! Você estava se aborrecendo todos os dias na rua, estava me dando sinais e não percebi.
- Calma, Maria Helena – Tio Valter interveio. – Não é culpa sua, nem de ninguém. Sim, o sinais estavam surgindo, mas ninguém se atentou. Muito menos podemos dizer que os negligenciamos. Isso tudo tem um culpado e não somos nós. É a moto e vou explicar. Como disse, resolvi correr atrás do motivo da moto ficar tão pouco tempo na mão dos seus proprietários. Rastreei no sistema do DETRAN e achei o proprietário anterior. Garoto novo, universitário e de classe média alta. Ficou menos de seis meses com ela. Motivo da venda? Podem ler aqui no e-mail que ele me respondeu. Ele se tornou uma pessoa agressiva depois que comprou a moto. Os amigos notaram, a namorada notou, a família notou. Peguei com ele os documentos do proprietário anterior e adivinhem o que aconteceu. Nem precisam responder. Ficou agressivo. Achei os outros dois anteriores e nem preciso prosseguir, não é mesmo? A mesma história. Daí fui no primeiro proprietário. Aliás, proprietária. Marcela. Pasmem. Ela está morta.
- Pai meu e da nossa senhora! – Maria Helena exclamou.
- Calma – Tio Valter prosseguiu. – Ela não morreu de acidente de moto. Ela teve um derrame, ficou alguns dias internada e depois morreu. Ainda em vida, nas suas últimas horas, ela pediu para ser enterrada com a moto. A família achou que era uma grande besteira. Disseram que ela estava dando uma dramaticidade a um meio de transporte. Acontece que ela era membro do moto-clube feminino Bruxas do Asfalto. Dizem que esse moto-clube é composto apenas por mulheres envolvidas com bruxaria. Fui falar com uma das integrantes do moto-clube. Ela quem me contou esses detalhes. Segundo ela, a família vendeu a moto porque precisava de dinheiro para pagar o funeral e as dívidas que ela deixou ao morrer. O moto-clube era contrário e avisou à família que estavam comentando um grande erro. Venderam a moto e começaram os problemas para o primeiro dono. Amigos, essa moto, pelas palavras da integrante, é amaldiçoada pelo espírito da tal Marcela. Ele vem expulsando seus novos proprietários até que seja colocada onde deveria estar, no túmulo da sua primeira dona. Acho que não preciso dizer o que devemos fazer, não é mesmo?
O consenso da família foi geral. No dia seguinte, duas integrantes do moto-clube apareceram na casa de Luis Antonio acompanhadas de um reboque. Lamentaram não poder pagar pela moto. Luis Antonio, na sua forma original, de forma elegante, agradeceu por nada de pior ter acontecido e desejou uma eterna paz para a amiga delas. Enquanto elas iam embora, Maria Helena e Luis Antonio ficaram no portão de casa admirando a Neguinha partir. Luis Antonio se lamentou em voz alta:
- Eu vou sentir uma saudade do caralho dessa moto.
- Meu bem – Maria Helena olhou assustada para ele. – Você ainda está sob efeito da...
- Calma – Luis Antonio a interrompeu. – Foi uma brincadeira apenas para te assustar.
- Enfia essa brincadeira no cu.
- Boa, Maria Helena. Boa tirada aproveitando a deixa.
- Não foi tirada, Luis Antonio – Maria Helena virou se de costas para ele seguiu para dentro de casa falando em voz alta. – E prepare uma grande viagem para se desculpar por tudo que aconteceu.
- Pois é, - Luis Antonio falou em voz alta. – acho que vou ter que cancelar minha aposentadoria para pagar essa viagem.

Próximo conto da coleção em breve