Conto anterior da coleção: 217 dias
Neguinha
Já tinham se passado duas horas além do horário habitual que o
restaurante fechava. Na cozinha, os funcionários encerravam a limpeza e os
preparativo para se iniciar um novo turno no dia seguinte. No vasto salão,
quase todas as mesas arrumadas, faltava apenas uma. Faltava a mesa que até
algumas horas atrás era a cabeceira de uma enorme sequência de mesas perfiladas
com quase trinta convidados. Tinha sido uma noite incrível. Luis Antonio
reunira amigos e familiares para comemorar a entrada na aposentadoria. Ele
estava com quase 68 anos vida, sendo 40 deles dedicado à odontologia. Dono de
uma das agendas mais disputadas da Urca, ele fechou seu consultório que vivia
lotado de pacientes que não pensavam na dor, mas apenas em serem tratados por
umas das mãos mais leves da categoria. Em uma reportagem veiculada numa
revista dominical, foi apelidado de o doutor da broca de plumas. Luis Antonio
era mais do que um homem com mãos leves, quase imperceptíveis, no cuidado dos
seus paciente. Ele era também um homem tranquilo de fala suave. Conversar com
ele, era quase que receber um cafuné.
- Meu bem, precisamos ir. O gerente já está começando a olhar atravessado
para nós.
- Sim, querida, precisamos mesmo. Deixe-me apenas terminar esta última
taça de vinho. Esta taça... Fernando! – Luis Antonio fez uma pausa para chamar
a atenção de seu único filho que cochichava algo ao ouvido da esposa.
– Fernando, escute, por favor, meu filho. Esta taça é a mais especial de toda a
noite. Oficialmente, esta é a última taça de vinho que beberei enquanto ainda
cirurgião-dentista praticante. Ao chegar em casa, meu bem, abriremos aquele
português que está escondido ao fundo da adega. Será o meu primeiro vinho como
Luis Antonio, o aposentado.
- Meu bem, você não acha que... – Maria Helena, sua esposa começava a
falar, quando foi interrompida pelo filho Fernando.
- Mãe, deixe o coroa em paz. Deixe ele encher a cara. Agora ele é Luis Antonio,
o aposentado. Adorei isso pai. Ficou uns quinze anos mais velho. Estou até
imaginando aqui o próximo destino de viagem. Nada de Paris, Londres, Nova York
ou Munique. Esses eram o lugares que Luis Antonio, o cirurgião-dentista ia para
impressionar os amigos. Agora, Luis Antonio, o aposentado, vai para
Conservatória, Penedo, Raposo, Gramado... – nesse momento, Maria Helena
interrompe seu filho.
- Pare de bobagens, meu filho. Pois saiba, que no início do nosso
casamento, quando estávamos apertados, íamos muito para Gramado. Não era meu,
bem?
- O gerente daquela pousada nos conhecia por nome e sobrenome – Luis
Antônio prosseguiu. – E saiba, Fernando, que você quase foi feito lá. Por
sorte, naquele aniversário de casamento, seus avó nos deram de presente uma
viagem para Bariloche.
- Talvez isso explique eu sentir calor com tanta facilidade. – Fernando
provocou o pai. – Então, me digam, qual será o destino da viagem para
comemorar? Precisa ser algo diferente.
- Por enquanto, não vai ter viagem, meu filho. Combinei com sua mãe que
isso ficará para o final do ano. Passaremos o Natal pela primeira vez fora do
país e longe de vocês. Será estranho e um pouco triste, mas achamos que será
uma experiência nova válida. Vou aproveitar essa nova fase da minha vida para
dar início a um antigo sonho meu. Não me peçam para antecipar. Quero que a
surpresa seja total. Sábado, faremos um almoço lá em casa. Por favor, apareçam.
O tio Valter e a tia Ana estarão com as crianças. Vai ser lá que anunciarei...
ou melhor dizendo... mostrarei a surpresa.
No sábado, estava a família reunida no jardim da entrada da bela casa em
que Luis Antonio e Maria Helena moravam em um condomínio fechado na Barra da
Tijuca. Quando os convidados chegaram, Luis Antonio já tinha saído. Passaram
duas horas e nada. Além de ansiosos, já estavam com fome. Petiscos de frios e
torradinhas acompanhadas de pastas não davam mais conta. Duas garrafas de vinho
foram esvaziadas. Os assuntos tinham morrido e já estavam na fase dos lugares
comuns.
- Minha nossa senhora, que barulheira é essa?
Maria Helena se espantara com um grave barulho que se aproximava. Nem
era necessário o seu comentário. Todos eram capazes de ouvir quando ainda
estava distante e, pelas expressões, estavam tão assustados quanto ela. O
barulho que à distância já era impressionante, foi se aproximando. Quando
chegou ao seu volume máximo, não se afastou mais. Tinha parado. Os familiares
se entreolhavam. Todos tinham entendido que o som estava em frente a porta da
casa. Antes que alguém pudesse tomar qualquer iniciativa, o portão da garagem
se abriu tornando o som mais alto ainda. Os poucos segundos de suspense que se
criou foram quebrado com a entrada de Luis Antonio montado em um moto negra
esporrenta. Era uma Harley-Davidson modelo Fat-Boy com um guidão alto. A moto
era toda negra, grande e imponente. O espanto que antes era apenas com o
barulho, agora somara-se à cena.
- Minha nossa senhora, meu bem.
Maria Helena se levantou espantada acompanhada dos familiares que
calados seguiram na direção de Luis Antonio. As reações foram diversas.
Fernando, o filho, acompanhado do tio Valer se concentraram em comentários
elogiando a moto. Maria Helena e sua cunhada, tia Ana, se atentaram ao suposto
grau de irresponsabilidade que envolvia aquela aquisição. Debora, a nora, foi a
única que não se preocupou com a novidade. Sua atenção foi exclusiva para o
sogro. Aliás, o sogro protagonizava uma cena bem contraditória. Ele estava
vestindo uma calça social bege e uma camisa xadrez de botões e mangas curtas
enquanto montava uma moto típica de bad boys que usam couro,
não fazem a barba, odeiam mangas em camisas e cheiram à cigarro e bebida.
- Tio, você está muito vermelho. O sol te castigou nesse passeio de moto
– constatou a nora.
- Vermelho? Mas o capacete é fechado. Nem fico com o rosto exposto ao
sol.
- Tem razão – ela concordou. – Inclusive, seus braços estão normais.
Apenas seu rosto que está vermelho. Muito vermelho. Esse capacete te sufoca?
- Não, nem um pouco. Ele é bem confortável. Isso deve ser por conta de
um aborrecimento que tive no caminho para cá. Um carro fez um movimento
inapropriado quase provocando acidente comigo. Acabei me desentendendo com o
motorista em uma breve discussão.
- Mas, tio, a ponto de ficar vermelho desse jeito?
- Foi uma grande lambança que aquele irresponsável fez.
A moto foi tema de quase toda a tarde do almoço. As conversas não fugiam
muito das preocupações da esposa e irmã, nem dos comentários do cunhado e filho
sobre mecânica, estilo e velocidade. O ápice foi quando Luis Antonio disse que
a moto tinha um nome, Neguinha. Obviamente que todos resolveram encarnar nele.
Com muito esforço, sob uma chuva de deboches, ele explicou que o nome já veio
com a moto. Neguinha era o nome dela já com o primeiro proprietário e, na
cultura dos motociclistas, não se muda o nome de uma moto. Tio Valter insistiu
na troca do nome ou, até mesmo, extinguir essa ideia que ele considerava
patética.
- Não, Valtinho! Não se pode cometer uma heresia dessas. Nenhum dos
outros donos fez isso. Não seria eu quem quebraria uma tradição deste tipo.
- Outros donos? – Tio Valter perguntou com uma mistura de espanto. –
Quantos donos essa moto já teve?
- Eu sou o sexto.
- Veja bem, Luis Antonio. Eu não entendo muito de moto. Aliás, a única
coisa que entendo de moto é que elas têm duas rodas e, por isso, foram feitas
para cair. Todavia, de carro eu entendo e sei que, um carro que pula muito de
dono em dono, é dor de cabeça na certa. Na maioria das vezes, o carro tem algum
problema crônico que nenhum mecânico consegue resolver.
- Ora, Valtinho, estamos falando de uma Harley-Davidson. Não é possível
construir uma frase que contenha ao mesmo tempo Harley-Davidson e problema
crônico. Não podemos nos esquecer que, não bastante, é uma Fat Boy carburada.
Um sonho moderno dos fãs da marca.
- Pois então, Luis Antonio – Tio Valter tenta ser contundente em seus
argumentos. – Agora que não faz sentido mesmo. Como um sonho de consumo troca
tanto de mão para mão? Essa moto não tem nem quinze anos. E sem falar que é
meio estranho que, num meio em que se apegam aos nomes às motos, não se apeguem
à própria trocando rapidamente. Ainda acho que tem algo de estranho no ar.
Luis Antonio não conseguiu argumentos para acabar com a desconfiança do
Tio Valter. Em contrapartida, o próprio, por não entender de mecânica de motos,
não pode comprovar para o cunhado que a moto era uma furada. Maria Helena, que
já não estava gostando nem um pouco da novidade, cortou a discussão quando
ainda era uma conversa apenas.
Ainda perdido sem ter o que fazer com seus dias livres de aposentadoria,
Luis Antonio não fazia outra coisa a não ser passear com seu novo brinquedo
pela orla da praia da Barra da Tijuca. Ia comprar pão de moto, ia ao banco de
moto, ia ao mercado comprar poucas coisa de moto. Era ele e a moto para cima e
para baixo. Duas semanas inteira de relacionamento solteiro com a Neguinha. Ele
insistia muito, mas Maria Helena se negava a andar naquilo que ela considerava
ser um veículo extremamente perigoso. Ainda mais na idade dela que não permitia
muitas surpresas, ela enfatizava sempre ao final. Contrariado com a insistente
relutância da esposa, Luis Antonio seguiu para a terceira semana com seus
passeios diários solitário. Sua esposa começou a perceber que, aquilo que ele
chamava de falta de companheirismo, estava o aborrecendo. Ela já tinha notado
antes que, a cada dia que passava, ele chegava mais vermelho. Sua desconfiança
era igual à de sua nora, excesso de sol. Contudo, se tivesse prestado atenção à
conversa dos dois no primeiro dia, passaria a desconfiar de outra coisa.
Com quase um mês de Neguinha na sua casa que Maria Helena sucumbiu aos
pedidos, agora um pouco acalorados, de Luis Antonio. Era uma noite de
segunda-feira. Para ela, a orla estaria sem trânsito algum e se sentiria mais
segura. Não foram necessários muitos minutos para que a sua sensação de
segurança terminasse. Ainda dentro do condomínio, com chão de paralelepípedo,
Maria Helena, sem intimidade com o banco do carona e com poucas opção de onde
se segurar, sentiu um pânico súbito. Pediu para que Luis Antonio retornasse. O
marido se negou. Ordenou que parasse de frescura e se segurasse direito nele.
- É só se agarrar em mim como aquelas periguetes de rabo empinado.
Maria Helena estranhou o linguajar de Luis Antonio, mas nada comentou,
pois seu pânico tinha tomado conta de sua mente. Tudo que ela queria era se
segurar em algo e ter a sensação de que não seria deixada para trás em um chão
áspero. Ao sair do condomínio, com um asfalto nivelado, o sacolejo da moto
quase zerou. Maria Helena pode aos poucos entender como se posicionar e retomar
o controle de si. Enquanto isso, Luis Antonio seguia na direção de um retorno
que sairia direto na pista da praia. Ele precisou esperar um carro passar para
entrar na principal. Maria Helena ainda recuperava o fôlego quando o momento de
sair foi aproveitado por Luis Antonio arrancando em alta velocidade, dando um
forte tranco na esposa. Ela quase, literalmente, ficou para trás. Por sorte,
teve reflexos suficientes para abraçar por completo o marido. Ainda assim, seu
movimento brusco de tentar se manter na moto acabou desestabilizando Luis
Antonio, logo a moto também.
- PORRA, MARIA HELENA – Luis Antonio gritou assim que conseguiu retomar
o controle da moto. – QUER NOS JOGAR NO CHÃO? QUE MERDA!
O que era no início um medo instintivo por moto, virou um colapso
nervoso. A cabeça de Maria Helena deu curto circuito. Era o eminente risco de
cair de uma moto em alta velocidade que ela tinha acabado de escapar. Era o
grito de Luis Antonio, algo que ela nunca ouvira em toda a sua vida com ele.
Maria Helena sequer conseguia falar de tanto que se tremia e chorava. Com muito
esforço, ela pediu para que ele encostasse. Coisa que ele fez visivelmente consternado.
- Por que você está chorando, Maria Helena? – Luis Antonio perguntou
assim que ela tirou o capacete e revelou um rosto em total estado de caos. –
Você que quase nos derrubou. Mesmo assim eu contornei tudo. Pare de dramas. Foi
apenas um susto.
Maria Helena apenas chorava, tentava recuperar o ar e limpava o rosto
que estava lambuzado num mix de lágrimas, saliva e coriza. Luis Antonio seguia
a recriminando numa postura agressiva jamais vista antes. A esposa permanecia
na intimidade do seu pânico. Nada ao seu redor roubava a sua atenção, nem o seu
marido em um estado estranhamente novo. A cena perdurou por quase meia hora,
até que Maria Helena, com visivel pouco fôlego, se levantou dizendo que ia
chamar um táxi.
- Não, não vai chamar taxi porra nenhuma – Luis Antonio foi contundente
mais uma vez numa versão inédita da sua personalidade. – Você é minha esposa!
Você saiu comigo! Você está comigo! Você volta comigo!
Ainda muito nervosa, Maria Helena implorou ao marido que a deixasse ir
de táxi para casa. Ela argumentou que estava muito nervosa para conseguir
voltar com segurança numa moto. Disse também que ele estava bastante irritado.
Para ela, cada um voltar de uma maneira diferente seria melhor para
espairecerem as cabeças.
- Não, não vou admitir isso! Ou você volta comigo, ou você nem volta.
Maria Helena estava exausta psicologicamente. Por mais que quisesse, não
tinha condições mentais, e talvez físicas, para prolongar aquela conversa. Não
relutou. Levantou-se da beira da calçada, colocou o capacete e se posicionou ao
lado da moto esperando por Luis Antonio para subir depois dele. Com os dois na
moto, Luis Antonio seguiu para casa. Desta vez, sem forçar muito a velocidade.
No meio do caminho, um carro trocou de pista obrigando Luis Antonio a frear.
Nada muito brusco. Mesmo assim, ele, assim que teve oportunidade, colocou a
moto em movimento novamente e emparelhou com o carro:
- Ôh, seu filho da puta – Luis Antonio disse para o motorista do carro
com o dedo em riste. – Não tem retrovisor nessa merda, não?
- Qual o seu problema? – o homem rebateu. – Você estava longe. Ou vai
dizer que é o dono da rua e preciso da sua autorização para mudar de pista.
- Você vai precisar de autorização para conseguir uma cirurgia de
reconstrução facial se enfiar essa merda de carro novamente na minha frente.
Abre o seu olho – terminada a ameaça, Luis Antonio não deu tempo de resposta
para o homem e seguiu em frente.
Já em casa, Maria Helena cogitou ligar para o filho. Desistiu. Pensou em
ligar para a cunhada. Refugou. Para ela, compartilhar aquele momento poderia
piorar mais as coisas. Talvez Luis Antonio reagiria mal àquilo e voltasse a se
descontrolar. Ela, de fato, odiara aquela cena que viu pela primeira vez.
Todavia, não queria ver novamente. Maria Helena cogitou então que sepultar
aquele acontecimento seria a medida mais prudente.
Foram mais algumas semanas com Luis Antonio fazendo seus passeios
solitários na Neguinha. Esporadicamente, ele fazia um convite e Maria Helena,
numa posição bem passiva, negava inventando algo mais importante a se fazer.
Certa tarde, o telefone da casa tocou. Maria Helena estava só e então atendeu.
Era seu filho Fernando. Ele começou a ligação pedindo para a mãe ter calma.
Geralmente isso deixa as pessoas mais nervosas ainda. A mãe entrou em pânico.
De imediato, pensou no pior. Luis Antonio sofreu um grave acidente, ela
perguntou sem pestanejar. O filho negou de imediato para acalmar a mãe. Não,
nada de acidente, ele disse. Papai estava preso, Fernando completou na
sequência. Maria Helena perguntou em qual delegacia, o filho respondeu e em
seguida ela desligou partindo em disparada.
Assim que chegou à delegacia, Maria Helena foi recebida pelo filho que
não quis entrar em maiores detalhes. Ele preferiu deixar por conta do delegado
que a esperava em sua sala. Simpático, ele cumprimentou Maria Helena, tentou
deixá-la confortável apesar das insistentes perguntas da esposa.
- Não, senhora, seu marido não vai para a prisão. Ele apenas foi detido
por vandalismo e tentativa de agressão. Por ele não ser primário, uma fiança,
acredito, será suficiente. Como ele não tem ficha, pesquisei um pouco sobre ele
e fiquei impressionado como é a típica situação que jamais esperaria de um
homem como seu marido. Ele está passando por alguma turbulência na vida
particular, profissional ou sei lá mais o quê?
- Não, seu delegado – Maria Helena respondia quando foi interrompida
pelo delegado.
- Freitas, senhora. Pode me chamar de Freitas.
- Desculpe – Maria Helena prosseguiu. – Não, Freitas. Quero dizer,
estava tudo bem, sim. Estava tudo na perfeição que sempre foi viver com o Luis
Antonio. Daí, foi só ele se aposentar que as coisas meio que saíram do controle.
O meu bem começou a se tornar um homem impaciente, grosseiro em alguns momentos
e até, digamos, sofisticou seu vocabulário com diversos palavões.
- O que é isso, mãe? – Fernando se assustou com o depoimento da mãe. –
Não estou sabendo disso. Papai anda nervoso?
- Bastante, filho. Gritou comigo outro dia. Falou palavrões. Chega
irritadiço da rua. Não sei, mas acho que o tempo ocioso da aposentadoria está
fazendo mal a ele. – Maria Helena fez uma pausa para segurar um choro que ficou
evidente para todos e depois se direcionou para o delegado. – Freitas, o que o
Luis Antonio fez?
- Pois bem, senhora. Segundo relatos do próprio, ele foi fechado por um
ônibus que quase provocou um grave acidente. O motorista do ônibus disse que
não foi nada de especial. A moto sequer caiu no chão. Aparentemente, ele parou
a moto na frente do ônibus e começou a discutir com o motorista. De repente,
ele se descontrolou mais do que já estava e começou a quebrar os retrovisores,
janelas e para-brisa do ônibus.
- Meu senhor, Freitas! Como que o meu bem conseguiu quebrar tanta coisa?
- Ele usou um martelo, senhora.
- Um martelo?
- Meu senhor! Minha nossa senhora! De onde ele tirou um martelo?
- Depois de muito conversar com ele, descobrimos que ele já vinha há
alguns dias pilotando a moto com um martelo preso à perna?
- Meu pai andando com um martelo? Seu Freitas, isso não faz sentido nem
na época que ele era dentista. Ele nunca usou um martelo na vida. Qual a razão
disso?
- Vejam bem – Freitas demonstrou desconforto em prosseguir. – É comum em
alguns moto-clubes que seus integrantes andem acompanhados de algo para se
defender de desavenças.
- Mas, papai não é de moto-clube. Ele é apenas um dentista que dirige
uma Harley-Davidson.
- Bem – Freitas estava muito desconfortável com o que ia dizer. –
Algumas pessoas, quando compram essas motos, ficam sob influências de filmes,
mitos e acabam sob sugestão de personagens. O martelo, por exemplo, por muito
tempo foi conhecido como o artifício usado por membros do moto-clube Hells
Angels. Vai ver ele leu algumas coisas sobre, viu uns documentários e pensou
que, agora que ele tem uma Harley, ele virou um cara mau. Isso acontece.
Acreditem!
A conversa se prolongou por longas horas até que conseguissem determinar
de fato o que estava acontecendo. Exaustos e sem opções, desistiram. Luis
Antonio foi solto após pagamento de uma fiança. Em seguida, pai, mãe e filho
seguiram para a casa do casal. Lá chegando, Tio Valter os aguardava. Eles
ficaram surpresos porque não tinham comentado coisa alguma com familiares,
apenas os três estavam sabendo daquilo. Tio Valter parecia ansioso para contar
algo, mas ao ver a péssima aparência dos três, se conteve e perguntou o que tinha
acontecido. Conforme Fernando ia contando para o tio detalhes do evento, Maria
Helena e Luis Antonio ficavam mais abatidos. Parecia que um tragédia tinha
assolado a família. No meio da história, a esposa de Fernando, Debora, chegou
e, mesmo pegando a história pela metade, não parecia nem um pouco surpresa. Ao
final, quando Fernando terminou de contar o acontecimento, tio Valter abriu um
enorme, soltou uma risada, bateu as mãos algumas vezes e se jogou de pé sobre o
sofá.
- Você também enlouqueceu, Valtinho? – Maria Helena perguntou.
- Não, não enlouqueci. Aliás, vocês iriam dizer exatamente isso caso não
tivesse acontecido esse surto do Luis. Estou feliz que aconteceu, de verdade.
Claro que estou feliz também que ninguém se feriu. Mas assumo que isso
acontecendo apenas ficou mais fácil de confirmar o que eu vim contar para
vocês.
- Valtinho, por favor – Maria Helena o interrompeu. – Nosso dia foi muto
cansativo. Não temos condições de lidar com voltas e serpenteios. Vá direto ao
ponto, por favor.
- Ok, é justo – Tio Valter desceu do sofá, se recompôs e prosseguiu. –
Pois bem, vamos lá. Desde aquele almoço em que você, Luis Antonio, apareceu com
a tal Neguinha que fiquei inquieto com a tal história de a moto ter rodado na
mão de tantos proprietários. Principalmente pelo que falamos naquele dia. Nunca
deu problema, é uma moto desejada por todos, os que compram costumam ser fiéis
às elas. Sim, sentia que tinha algo de estranho no ar. Vocês sentiram também,
mas não perceberam. Luis Antonio dava sinais de mudança de personalidade. Ele
começou a ficar uma pessoa irritadiça. Vocês viram com o evento de hoje. Maria
Helena vivenciou um momento de pico na rua, segundo acabaram de me contar.
- Eu também notei – Debora, a esposa de Fernando, pegou a palavra.
- Você também – Tio Valter reagiu com surpresa e empolgação ao mesmo
tempo. – Que ótimo! Mais pessoas para sustentarem o que estou para contar.
- Peraí – Fernando interrompeu. – Quando que você percebeu algo, Dab?
- No primeiro dia. Ele chegou muito vermelho. Perguntei o motivo e disse
que tinha se aborrecido no trânsito com algum motorista. Ninguém notou. Apenas
eu notei porque estranhei ele estar vermelho. Pensava que era...
- VERMELHO DE SOL – Maria Helena falou junto com a nora e depois seguiu
só na fala. – Sim, ele voltava dia a pós dia sempre vermelho. Achava que era
sol, mas ele nunca se bronzeava ou descascava. Claro, meu bem! Você estava se
aborrecendo todos os dias na rua, estava me dando sinais e não percebi.
- Calma, Maria Helena – Tio Valter interveio. – Não é culpa sua, nem de
ninguém. Sim, o sinais estavam surgindo, mas ninguém se atentou. Muito menos
podemos dizer que os negligenciamos. Isso tudo tem um culpado e não somos nós.
É a moto e vou explicar. Como disse, resolvi correr atrás do motivo da moto
ficar tão pouco tempo na mão dos seus proprietários. Rastreei no sistema do
DETRAN e achei o proprietário anterior. Garoto novo, universitário e de classe
média alta. Ficou menos de seis meses com ela. Motivo da venda? Podem ler aqui
no e-mail que ele me respondeu. Ele se tornou uma pessoa agressiva depois que
comprou a moto. Os amigos notaram, a namorada notou, a família notou. Peguei
com ele os documentos do proprietário anterior e adivinhem o que aconteceu. Nem
precisam responder. Ficou agressivo. Achei os outros dois anteriores e nem
preciso prosseguir, não é mesmo? A mesma história. Daí fui no primeiro
proprietário. Aliás, proprietária. Marcela. Pasmem. Ela está morta.
- Pai meu e da nossa senhora! – Maria Helena exclamou.
- Calma – Tio Valter prosseguiu. – Ela não morreu de acidente de moto.
Ela teve um derrame, ficou alguns dias internada e depois morreu. Ainda em
vida, nas suas últimas horas, ela pediu para ser enterrada com a moto. A
família achou que era uma grande besteira. Disseram que ela estava dando uma
dramaticidade a um meio de transporte. Acontece que ela era membro do
moto-clube feminino Bruxas do Asfalto. Dizem que esse moto-clube é composto
apenas por mulheres envolvidas com bruxaria. Fui falar com uma das integrantes
do moto-clube. Ela quem me contou esses detalhes. Segundo ela, a família vendeu
a moto porque precisava de dinheiro para pagar o funeral e as dívidas que ela
deixou ao morrer. O moto-clube era contrário e avisou à família que estavam
comentando um grande erro. Venderam a moto e começaram os problemas para o
primeiro dono. Amigos, essa moto, pelas palavras da integrante, é amaldiçoada
pelo espírito da tal Marcela. Ele vem expulsando seus novos proprietários até
que seja colocada onde deveria estar, no túmulo da sua primeira dona. Acho que
não preciso dizer o que devemos fazer, não é mesmo?
O consenso da família foi geral. No dia seguinte, duas integrantes do
moto-clube apareceram na casa de Luis Antonio acompanhadas de um reboque.
Lamentaram não poder pagar pela moto. Luis Antonio, na sua forma original, de
forma elegante, agradeceu por nada de pior ter acontecido e desejou uma eterna
paz para a amiga delas. Enquanto elas iam embora, Maria Helena e Luis Antonio
ficaram no portão de casa admirando a Neguinha partir. Luis Antonio se lamentou
em voz alta:
- Eu vou sentir uma saudade do caralho dessa moto.
- Meu bem – Maria Helena olhou assustada para ele. – Você ainda está sob
efeito da...
- Calma – Luis Antonio a interrompeu. – Foi uma brincadeira apenas para
te assustar.
- Enfia essa brincadeira no cu.
- Boa, Maria Helena. Boa tirada aproveitando a deixa.
- Não foi tirada, Luis Antonio – Maria Helena virou se de costas para
ele seguiu para dentro de casa falando em voz alta. – E prepare uma grande
viagem para se desculpar por tudo que aconteceu.
- Pois é, - Luis Antonio falou em voz alta. – acho que vou ter que
cancelar minha aposentadoria para pagar essa viagem.
Próximo conto da coleção em breve