Capítulo anterior: Enfim, primeiro encontro
Não
eram nem dez da manhã quando o barulho da porta se abrindo me acordou. Imaginei
quer seria a Marlene, então nem me dei ao trabalho de levantar da cama, tampouco
de abrir os olhos. Voltei para o fim de sono que antecedia à ressaca e fui
acordado com um grito:
-
VAMBORA , HOMEM! LEVANTA ESSE CU DA CAMA!
Marlene
jamais me acordaria assim. Tinha de ser a desgraçada da Tatiana. Parada na
porta do meu quarto com duas mochilas, uma nas costas e outra no chão ao lado
da sua perna. Ela tem essa mania de andar de mochila para todos os lados. E
nunca é uma mochila parcialmente cheia. Não! É sempre uma mochila abarrotada de
coisas quase estourando o zíper. Sua desculpa é que, como fica revezando em
três endereços diferentes, precisa andar com algumas coisas sempre à mão. Ah,
para o inferno com esta desculpa, né? Basta deixar um kit básico em cada um dos
três endereços, se planejar melhor e então andaria com o mínimo. O fato é que
ela tem sangue de muambeira mesmo. Daquelas que cruzam a fronteira do Paraguai
com bolsas enormes cheias de tranqueiras. Enfim, desta vez eram duas e isto não
é um bom sinal.
-
Porra, sua imbecil. Odeio que me acordem gritando. Odeio levar susto.
-
Ah tadinho! Queria o quê? Cafuné? Uma massagem com final feliz? Uma dedada?
-
Até que uma dedada cairia bem agora.
-
O QUÊ?
-
Viu como é bom levar susto logo pela manhã? Larga de ser imbecil e faz algo de
útil na vida. Coloca a roupa que está amontoada no sofá na máquina de lavar e
aperte o botão iniciar, por favor.
-
Por que deveria fazer isso?
-
Por que você está aqui?
-
Porque preciso de um favor.
Daí
fiquei parado sério olhando para Tatiana e ela fez o mesmo para mim. Ela
levantou as sobrancelhas, eu repeti o gesto. Ela deu uma ligeira esbugalhada
nos olhos, fiz o mesmo. Ela jogou a cabeça um pouco para frente, eu a imitei
cinco vezes. Voltamos a ficar parados nos encarando até ela interromper dando
sinal de que captou a sutileza da coisa. Ela foi até lá para um favor, eu
precisava de um favor.
-
Tá! Já entendi, seu explorador.
Enquanto
Tatiana fazia o que tinha pedido, levantei-me aos poucos e fui ao banheiro. Se
existe uma coisa que é sagrada para um homem é a primeira mijada do dia. Não
somente pelo alívio, mas por ser um jato respeitável seguido de toda a
flatulência acumulada por uma noite inteira de sono. Sei que isso é meio
escatológico, mas não deixa de ser verdade. Pode perguntar a qualquer homem. Terminada
a sinfonia solo de um trompete enferrujado e o esvaziamento da bexiga, voltei
para o quarto. Tatiana já estava acabando de colocar as roupas na máquina.
Peguei o celular, não tinha mensagens recebidas. Olhei os históricos de conversas
durante a noite, nada constrangedor. Lista de chamadas feitas e recebidas
estava imaculada. Aparentemente foi uma noite de poucos estragos.
-
Pronto – disse Tatiana entrando no quarto e jogando uma das mochilas na cama. –
Preciso da sua ajuda. Tenho uma festa hoje e quero sua opinião sobre qual
vestido usar.
-
É, a tal dedada agora soa bem mais interessante.
Ela
riu e disse que não tinha escapatória. Em seguida, pediu que me ajeitasse na
cama para poder espalhar os vestidos. E não eram poucos. Não parava de sair
vestido daquela mochila, era quase como palhaços saindo de um Fusca. Ao final,
minha cama parecia uma feirinha de estacionamento de supermercado. Ela foi
então ao banheiro com um em mãos.
-
Que tal?
Ela
me perguntou um minuto depois ao sair do banheiro com um vestido de cor azul
meio que escuro, puxando para o roxo. O tom flertava um pouco com metálico e
tinha umas alças finas no ombro.
-
Você está parecendo um presente da Roberto Simões.
-
O que é isso?
-
Sua pobre, é uma loja cara de presentes para casa.
-
Ah, então isso é bom!
-
Se você quiser ser um cinzeiro pretensioso que nunca será usado por pena de
sujá-lo, sim.
-
Hum, acho que quero ser usada. E muito!
Ela
voltou rindo para o banheiro com outro vestido em mãos. Mais um minuto e lá
estava Tatiana com um vestido de cor meio indefinida. Algo verde, com azul e
amarelo. Tudo misturado parecendo que foi mergulhado em água sanitária. Não
bastante, por cima dele tinha um tecido tipo tela com furos bem finos.
-
Céus, você está parecendo uma Sininho de peça infantil de baixa renda.
-
Ah para! Ele é levinho!
-
Ótimo! Use-o quando precisar se pesar vestida.
Lá
se foi Tatiana resmungando para o banheiro mais uma vez. Agora era um conjunto
composto por uma saia preta e blusa branca de bolinhas pretas com uma gola bem
grande. Ela saiu do banheiro e parou com a mão na cintura.
-
É festa à fantasia?
-
Não!
-
Então não use. Parece secretária de filme cafona da década de sessenta. Coloque
um laçarote no pescoço e virará a Lucy.
-
Quem é Lucy?
-
Lucy do seriado I Love Lucy.
-
Você é um hétero com umas referências muito estranhas.
-
A começar pelas amigas que querem que dê palpites de roupas.
Ela
riu concordando e voltou para o banheiro. Mais outro minuto e já estava com um
vestido estampado de manchas que mudava a cor do fundo em diversas partes. Algo
como uma união de retalhos de tecidos com estampas iguais, mas com cores
distintas no fundo.
-
Você está igual a um chão de alfaiataria.
-
Jura?
-
Claro! Olha esse monte de cores de maneira caótica.
-
Eu gosto tanto desta estampa.
-
Parece um cu de jaguatirica.
-
É fofo!
-
Ok, um cu fofo de jaguatirica.
Ela
resmungou alguma coisa antes de entrar no banheiro. Retornou em seguida com um
vestido mais comprido que os demais. Ele também era estampado, mas com
referências tropicais, lembrando praia, flores, sol, entre outras coisas. Era o
mais alegre de todos.
-
É em um cruzeiro?
-
Não!
-
Que bom. Porque se fosse, iriam te confundir com uma cortina e provavelmente um
marinheiro bêbado limparia o pau em você.
Segue
Tatiana para o banheiro com a última peça, finalmente. Confesso que estava me
divertindo, mas precisava também tirar o rabo do quarto e ver um pouco de luz
natural. Nisso ela voltou com um vestido tubinho preto colado ao corpo, modelo
tomara que caia e muito curto.
-
Você está parecendo uma puta.
-
Isso é bom?
-
Depende do preço.
-
Ah me ajuda – ela quase suplicou balançando os braços e se mexendo para os
lados.
-
Isso! Mais um pouco e coloco uma nota de dez no seu decote.
-
Porra! Dez?
-
Meu vale-alimentação está zerado.
Depois
de um breve esporro sobre não estar ajudando, ela foi enfática ao dizer que eu
precisava escolher uma das opções disponíveis, pois iria se arrumar na minha
casa. Perguntei então como era o evento para poder melhor balizar minha
decisão.
-
É uma festa e ponto final.
-
Assim fica complicado de te ajudar.
-
Faz diferença que tipo de festa é?
-
Dependendo do seu objetivo, sim.
-
Vai ter um carinha que estamos flertando tem um tempo.
-
Então o preto sem dúvida alguma.
-
Ah, mas você não gostou de nenhum. Deve ser o menos pior.
-
E isso faz alguma diferença? Logo a opinião de um bêbado que não tem gosto nem
para o que vai beber. O cara cujo pré-requisito para beber é estar líquido.
-
Não importa. Estamos falando de roupa.
-
Pior ainda. Onde que vale a opinião do cara que só veste jeans e camisas
pretas?
-
Para mim vale.
-
Se te consola, te comeria com qualquer um deles.
-
Jura?
-
Juro, mas precisaria estar muito bêbado para tomar coragem e puxar assunto com
você.
Ela
se sentou na beirada da cama para não amassar os outros vestidos e com a mão
sobre os joelhos lamentou aquilo tudo. Não era apenas implicância desta vez, as
opções eram todas umas merdas. Só que não faria a burrice de falar isso, ou
entraria em um vórtice sobre gosto e moda. Decido por matar de vez com aquilo,
me levantei e anunciei que iria à padaria tomar café. Ela disse que não queria
e iria ficar. Saí então do quarto quando ela pediu o que temia:
-
Vai ao shopping comigo então?
-
Mas nem a pau – gritei da sala enquanto abria a porta da rua.
-
Você vai me deixar sozinha aqui sem ter o que fazer?
-
Toque uma siririca!
-
Eu estou triste porra!
-
Toque com a berinjela que está na geladeira enfiada na bunda. Vai te animar.
-
Isso ofende!
-
Se te reconforta, a berinjela ouviu isso e também ficou ofendida.
Fechei
a porta e saí. Ela veio atrás me pedindo por ajuda. Para não correr o risco de
prolongar mais aquilo, voltei. Sentados na minha cama debatemos por um bom
tempo sobre a melhor roupa a ser usada. Por mim, manteria a opinião sobre o
vestido preto. Era suficientemente vulgar para o tal carinha ficar interessado
nela. Entretanto, para ela, eu deveria considerar outro ponto em questão.
-
É que vou me encontrar com ele em um evento da empresa.
Confraternizações
de final de ano de empresas são sempre um terreno ardiloso. As pessoas se esquecem
de que ainda estão em ambiente profissional e, com a ajuda do álcool, se
comportam de forma mais inapropriada possível. Falam o que não deve. Fazem brincadeiras
com quem não tem tanta intimidade assim. Sem entrar no mérito dos desmaios,
vômitos, tombos e trepadas no banheiro. Acreditem, acontece, não é lenda
urbana.
-
Baby, a roupa não está tão contida como deveria para uma festa da empresa.
Mesmo assim, é condizente com a sua idade. Se fosse uma gerente de quase quarenta
anos, diria que estaria para bancar uma periguete. Acho que dá para manter
assim. É Open Bar?
-
É, tudo liberado! Eles fecharam o segundo andar de um restaurante na Lagoa. Vai
ter banda e tudo.
-
Poxa, baby. Não rola convite para parentes? Tipo... amigos bêbados?
-
Eu até cogitei te chamar, mas você anda nessa fase agarrado à Juliana. É
Juliana para cá. Juliana para lá. Só dá ela na sua vida. Tem duas semanas que
não nos falamos.
-
Era só me mandar mensagem, ora.
-
E iria responder? Você não larga essa menina. Estou até começando a desgostar
dela.
-
De onde tirou que estou agarrado o tempo todo com ela? Não é assim, não!
-
Como não? Nem foi ao Natal da sua família para ficar com a dela.
-
Eu? Quem te falou... Ah tá! Falou com a minha mãe, né?
-
Sim! Liguei para sua mãe para desejar feliz Natal para ela e, papo vai, papo
vem, ela meio que se lamentou comigo. Ela até está feliz por você estar
namorando sério outra pessoa. Ela entende como uma tentativa sua de colocar as
coisas nos rumos certos. Mesmo assim, ela ficou chateada, né? Com toda razão,
baby. Deixar de passar um dia do Natal com seus pais porque estava com a
família da nova namoradinha? Dava para administrar melhor isso aí. Passava a
noite do dia 24 com uma família e o dia 25 com a outra. Agora faltam dois dias
para o réveillon e você nem deu um beijo de Natal nos seus pais.
Apesar
do tom ameno, senti um leve esporro no discurso de Tatiana. Ela tinha razão.
Mesmo iludida por uma versão mentirosa. Não, não tinha ido passar o Natal com
meus pais, entretanto Juliana não foi o motivo. A verdade é que estava sem saco
para aturar família. Digo família no sentido coletivo. Pais, tios, primos,
enteados, ajuntados e terceiros desgarrados de suas verdadeiras famílias. Em
condições normais de temperatura e pressão, esses eventos já são uma tortura.
Ninguém bebe no meu ritmo e ainda me condenam por isso. Não bastante, me
ignoram por completo na hora de estruturar o evento. Leia-se, compram pouca
bebida. De quebra, eles insistem naquelas conversas chatas as quais respostas
monossilábicas se tornam desperdício de saliva. Mesmo assim, não era uma
situação em condições normais. Estava recém-divorciado da Maria Fernanda. Era
certo que seria fuzilado por perguntas que agrediriam o bom senso por estarem
tão além da barreira do limite da intromissão na vida privada de alguém.
Obviamente, esses questionamentos seriam feitos repetidamente por parentes
diferentes, em momentos distintos, em pontos isolados da festa. Não responder a
qualquer um deles seria considerado uma afronta à instituição. Para a família,
casamento era um acordo social e a dissolução dele deveria ser feita
oficialmente em um evento coletivo. Membro a membro da família deveria ser
notificado da fatalidade, eles insistem em classificar assim. Como se não fosse
suficiente, escutaria ainda sermões, indiretas, conselhos e pedidos de mãos juntas
para repensar a vida. A bebida seria usada como culpada em dosagens
inversamente proporcionais às dosagens que consumiria no evento. Não, obrigado.
Não queria ir.
-
Ah baby, não acredito que tenha feito isso com sua mãe. Você está falando isso
só para me provocar, né?
-
Não, não estou. Eu juro. Não estava no clima e inventei a história da Juliana
para que não tivesse de ouvir as lamentações da minha mãe.
-
Não! Não! Eu aceito seu mau humor matinal. Lido de boa com as suas grosserias
gratuitas para não demonstrar afeto por mim. Aturo qualquer coisa torta que
você faz, mas isso não. Se você não ligar agora para a sua mãe e contar a
verdade, eu irei.
Tatiana
é indiscutível uma pessoa de bom coração. Preciso reconhecer também a sua
tolerância com a minha personalidade de merda. Só que tem vezes que ela é tão
burra quanto um tamanco velho. Tentar me recriminar pelo que fiz, seja uma
atitude condenável ou não, só iria prolongar uma discussão a qual meu prazer
mórbido perpetuaria até reverter os papéis e fazê-la se sentir mal por ter iniciado.
Sem falar na hipótese de trazer minha mãe à conversa. Acabaria colocando as
duas como culpadas ao final.
-
Tá, não vou discutir isso com você. Ela é sua mãe e se você acha que está certo
o que fez com ela, quem sou eu para julgar, né?
-
Exato!
-
Mesmo assim, poderia ter passado com a Juliana ao menos para manter a
veracidade da sua escrotidão.
-
Ah, baby, ela ia passar com a família...
-
E qual o problema? – Juliana me interrompeu.
-
Você prestou atenção nos motivos que me levaram a não querer passar o Natal
com...
-
Ah tá – Juliana me interrompeu novamente. – Tem razão. Foi mal. Puxa vida,
achava que vocês estavam em uma espécie de lua-de-mel.
-
Sim e não ao mesmo tempo.
-
Como assim?
Apesar
de um breve início turbulento, ou confuso, as coisas com a Juliana eram meio
que monótona. Ela ia lá para casa, bebíamos alguma coisa, transávamos,
dormíamos e, no dia seguinte, ela ia embora. Em partes, era como o início de
uma vida de casado. Exceto pelo fato de que não acontecia todos os dias. Não
suficiente, aos finais de semana, quando tínhamos a opção de sair e fazer um
programa diferente, a primeira opção dela era ficar em casa. Quando a convencia
a sair, ela optava por algo discreto com apenas nós dois. No fundo, me senti
como um amante. Não sei se ela tinha vergonha por sair com um cara mais velho
ou de mim mesmo. Aquilo estava me incomodando de verdade a um ponto de me fazer
esquecer o que sentia por ela.
-
Que chato mesmo. Colocava muita fé em vocês dois.
-
Você não era a única. Eu também. Bem, vamos ver se é só questão de conversar
com ela e achar um ponto em comum.
-
Sim! Sabe o que acho? Ela pode estar sentindo um pouco de pressão. Você é um
cara mais velho, tem personalidade forte e era o professor dela. Você acha que
ela está coagida?
-
Coagida?
-
Não é bem coagida o termo que quero. A palavra me falta agora. Tipo quando
vocês dizem que a camisa pesa no jogador. Ah, esquece! Pensa nisso. Vai ver ela
acha que isso pode ser demais para ela e está pouco à vontade com você.
Eu
entendi o que a Tatiana quis dizer. Não acho que faça sentido. Ao menos seria
uma gota de esperança para mim, pois, até o momento, a expectativa de que o
relacionamento com a Juliana saia do outro lado é bem baixa. Claro que cogito
ter uma parcela de culpa na situação em que estávamos. Aceitava passivamente as
sugestões dela. Aliás, ficava tão bobo com ela que a tal personalidade forte
que Tatiana falou sumia. É até curioso constatar isso. Juliana se sentia
intimidada por estar com um cara mais velho que, perto dela, agia como um
garoto mais novo.
-
Então não irão se ver hoje?
-
Quarta-feira é sempre um dia ruim para ela.
-
Quer ir à festa? Posso ver se te coloco para dentro.
-
Lembro bem que disse palavras mágicas como Open Bar para descrever a festa.
Ora, por qual motivo não aceitaria?
-
Você precisa se comportar.
-
Ah, me ajuda!
-
Prometa!
-
Prometer o quê?
-
Que vai se comportar!
-
Isso é muito vago. Seja específica.
-
Prometa que não vai encher a cara, não vai dar show, não vai me fazer passar
vergonha, não vai assediar minhas colegas de trabalho ou colocar em risco meu
emprego.
-
Você sabe que jamais faria isso.
-
Você está falando sobre prometer o que te pedi, né?
-
Exato!
Tatiana,
como era esperado, relutou até o quanto pode. Ao final, cedeu. Depois, precisou
da mesma insistência que usei para convencê-la para fazer com que o colega do
departamento de marketing autorizasse a minha entrada. Aparentemente, eu teria
de assumir o papel de algum consultor que prestou serviço para a empresa
naquele ano. Mediante ao que me esperava, assumia até o papel de esposo da
Tatiana por mais vexaminoso que isso seria para a minha imagem.
-
Eu consigo o que me pede e me trata assim?
-
Como se você aceitasse fingir ser minha esposa.
-
Eca!
Chegamos
à festa pouco mais de uma hora e meia além do horário no convite. Forcei um
atraso demorando no banho e me arrumando propositalmente. Não queria entrar em
uma festa com pessoas desconhecidas ainda sóbrias. Estranhamente, minha
estratégia não funcionou. Quando entramos, estavam todos sentados em suas mesas
conversando de maneira contida. Dava pena ver a mesa do bufê quase vazia. Nada
de funcionários se acotovelando para pegar logo comida e voltar para a mesa.
Era possível refletir com calma o que iria pegar. Nada estava prestes a acabar.
Olhei com espanto para Tatiana que me retornou um semblante blasé seguido da
ordem para me comportar. Um garçom servindo cerveja interrompeu nosso momento
mãe e filho. Antes que pudesse reagir ao que me era oferecido, Tatiana o
dispensou alegando que primeiro íamos comer algo. Odeio quando ela faz coisas
desse tipo. Qual o problema de beber uma dúzia de tulipas de cerveja para abrir
o apetite?
-
Coma algo ou digo para a segurança que você é penetra. Vou ali falar com meu
chefe e quando voltar quero ver o neném com um pratinho bem cheio, combinado?
De
fato, não podia reclamar do bufê. E nem falo do fato de estar vazio e, assim,
praticamente ao meu dispor. O pessoal da organização caprichou de verdade. Como
era de se esperar, tinha aqueles cacarecos tradicionais. Uma diversificação de
canapés que só servem para te dar sede e depois formar uma massa grudenta na
boca. A tradicional galinha com rabo de abacaxi e corpo composto de palitos com
ovos de codorna. Aliás, peguei uns quatro logo de início e os afoguei no molho
rose. Acabei comendo só três, porque um dos ovos se soltou do palito e ficou
submerso no molho. Para o inferno que iria resgatar aquele rebelde. Seguindo os
clichês, um mar de pães massudos para rechear com rolinhos de queijo prato e
presunto. Convenhamos, até para os meus padrões de bons modos, é constrangedor
ficar em um bufê cortando pãozinho e enchendo de frios em rolos. Passei a
diante. Pastas, patês e outras gororobas pálidas. Ia seguir em frente, mas uma
espécie de tigela em formato de abóbora me chamou a atenção. Nela, continha
queijo derretido borbulhante. Achei interessante. Peguei uma fatia de baguette
dentre as várias já cortadas em uma cesta. Com uma faquinha que mais parecia um
coletor de secreção para exames, passei o queijo derretido cobrindo por inteira
uma das faces da fatia do pão. Assoprei. Dei uma mordida. Tinha tempo que não
comia algo tão gostoso. Nunca fui bom identificando queijos, mas chutaria algo
como um provolone misturado com outro tipo queijo de orçamento mais baixo para
fazer volume com menos custo. Para incrementar, era possível identificar algo
puxando para o doce que talvez fosse damasco ou uma geleia dissolvida naquela
gosma suprema. A fatia que ainda tinha em mãos poderia ser saboreada em três ou
quatro mordidas. Coloquei tudo na boca e, enquanto tentava manobrar aquela
bomba calórica entre dentes e língua, voltei à cesta de pães para pegar mais
duas fatias. Larguei a tal faquinha laboratorial e mergulhei as fatias a fundo
na tigela. De lá, iam diretamente para a minha boca. A sensação era algo que
sou totalmente incapaz de descrever sem usar metáforas sexuais. Terminada a
segunda fatia adicional, peguei uma baguete inteira, que provavelmente estava
por lá mais para decoração, e, com ela em mãos, dei a volta na mesa para melhor
me posicionar junto à tigela. No meio do caminho, um garçom, provavelmente
querendo ser prestativo, disse que eu poderia me servir em um prato e levar
para a minha mesa. Eu não tinha mesa. Eu não queria sair dali e correr o risco
do queijo esfriar. Eu queria enfiar a baguete inteira no molho e ir mordendo
como se estivesse num festival particular de fondue para pessoas sem compostura
à mesa. Tanto queria que fiz. Lá estava eu, mergulhando aquele pão enorme no
queijo derretido. Pontinha por pontinha. Daí, mordiscava a parte com queijo
para não desperdiçar pão à toa. Pontinha por pontinha. Tinha esquecido totalmente
onde estava. Meu estado de êxtase era tamanho que ignorei tudo e todos ao meu
redor. Nada me incomodava. Bem, nada me incomodou até entrar na segunda metade
do pão.
-
Senhor salvador Deus pai – Tatiana exclamava do outro lado da mesa do bufê. – Minha
nossa senhora dos babadores, olha o seu estado.
Com
a boca cheia, tentei perguntar o motivo do espanto. Obviamente, ela não
entendeu e tudo que consegui foi, acidentalmente, ejetar um pedaço de pão em
algum pote de patê. Meu estado era realmente lamentável e sequer tinha me
atentado a isso. Vários pingos de queijo derretido tinham caído na minha
camisa. Fiapos esticados de queijo pendurados pela minha barba. Uma boca
envolta de mais queijo ainda como se fosse uma criança que tentou usar a
maquiagem da mãe. A situação era constrangedora. Confesso que não sabia de onde
saia tanto queijo. Ainda assim, Tatiana não precisava me constranger me dando
um generoso monte de guardanapos enquanto cobria o próprio rosto. Ela disse que
já voltava e, dessa vez, queria me encontrar em um estado apresentável. Fiquei meio
que escondido atrás de uma decoração feita com frutas e lá gastei os
guardanapos na tentativa de me deixar em condições de poder cruzar o salão rumo
ao banheiro. A verdade é que ninguém me daria bola, mesmo se passasse pelo
salão como estava antes. Inclusive se aproveitasse para fazer uma coreografia.
Talvez até deveria me sentir triste por não ser capaz de atrair a atenção
alheia, mas preferi deixar esse sentimento para o tecladista que sofridamente tentava
criar um clima aprazível de início de festa que, igualmente a mim, era ignorado
sem esforço. Saindo finalmente do banheiro, acabei me deparando com o simpático
garçom que tentou me tirar da mesa.
-
Muito gostoso aquele queijo, não, senhor?
-
Acho que essa definição é pouca, mas, sim, vou concordar com você. Por mim
ficaria ali a noite inteira.
-
E por que não fica, senhor?
-
Porque está na hora de se empanturrar de outra coisa. Sabe... álcool? É você
quem serve?
-
Tem garçom fixo para as bebidas, mas posso arrumar algo para o senhor. Algo em
especial?
-
O que vocês têm para servir?
-
Tem cerveja que está sendo servida na jarra. Espumantes nas taças estão rodando
também. Com menos frequência, mas tem.
-
Nada destilado?
-
O uísque ficou apenas para a diretoria. Tanto que apenas o maître tem acesso a
ele.
-
Puxa, que notícia ruim saber que apenas ele tem acesso ao uísque – lamentei
enquanto sacava uma nota de cinquenta do bolso deixando bem à mostra para o
garçom. – Adoraria uísque com queijo derretido no pão. Sabe como é, né?
Misturar estilos. Sofisticado com o rústico. Quase um viking com sotaque
britânico.
-
Senhor, infelizmente, não tenho acesso ao uísque. Me desculpe.
-
Eu te entendo, rapaz. Consegue outros destilados?
-
Sim, posso providenciar batidas, drinques, qualquer outra coisa.
-
Sabe fazer Cuba Libre?
-
Claro, senhor. É algo bem simples, inclusive.
-
Pois tome – entreguei a nota de cinquenta ao garçom. – Cuba Libre opressora à
noite toda.
-
O que seria Cuba Libre opressora, senhor?
-
Quase nada de Coca-Cola, pouco gelo, uma rodela de limão e muito, mas muito,
rum. A ideologia prevalece no copo.
-
Perfeitamente, senhor. O senhor é engraçado.
-
Outra coisa – segurei o garçom pelo braço enquanto se afastava. – Posso lhe
pedir outro favor?
-
A tigela de queijo derretido?
-
Não tinha pensado nisso. Você é bom, rapaz! Bem, fica para mais tarde! Está
vendo aquela menina baixinha?
-
A que chegou com o senhor?
-
Não repita isso em voz alta que dá azar.
-
O senhor é engraçado.
-
Que seja! Ela vai tentar regular o seu prestativo trabalho enquanto me traz as
bebidas. Ignore-a. Preciso de um copo cheio na mão durante toda a noite.
-
Pode deixar, senhor. Já volto com sua primeira dose de Cuba Libre oprimida.
-
Opressora!
-
Perdão, senhor! Opressora! Cubra Libre opressora.
E lá se foi o garçom.
Tinha a ligeira impressão que iria adorar a dedicação daquele danado.
Próximo capítulo: Ressaca moral