domingo, 16 de outubro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Canelinha

Artimanhas
Costuma-se falar que no desespero sempre revisitamos nossas ações para entender como fomos parar naquela situação. Só que não é a vida toda, não. A vida toda passa em flashback em nossas cabeças apenas quando estamos correndo sérios riscos de morte. Aqui é diferente, trata-se de um caso de punição por ter cometido um erro. Ou um crime, como as pessoas lá do lado de fora preferem afirmar. Nestes casos, as únicas coisas que passam em nossas cabeças são os atos que nos levaram até aquele ponto. Bem, no meu caso acaba sendo flashback da vida toda mesmo, porque isso tudo começou na minha infância.
Assim que cheguei ao jardim de infância, percebi que as coisas seriam complicadas. Era filho da secretária de um colégio frequentado por bacanas da Zona Sul e por isso não pagava mensalidade. Entretanto, era difícil acompanhar os coleguinhas mantendo um mesmo patamar em relação ao material. Eles tinham os melhores gizes de cera, canetinhas coloridas e potinhos de guache. Enquanto isso, eu tinha de me contentar com três canetas esferográficas, uma azul, uma vermelha e uma verde, que mamãe desviara do balcão de atendimento da escola. Tinha vergonha dos meus desenhos quando comparados com os dos outros alunos. Os deles eram borrões combinados com traços aleatórios, mas que, com tantas cores e diversidade de texturas, pareciam verdadeiras obras de arte. Já os meus eram redemoinhos e rabiscos uniformemente finos em três cores. Eram quase ilustrações para jogos de Atari.
- Vejam só – diziam os pais ao olhar os desenhos dos outros alunos expostos. – Eles estão se esforçando para valer.
- Ah tá – exclamavam os mesmos pais ao verem os meus desenhos expostos. – É aqui então que testo se a caneta do balcão da secretaria está funcionando.
Algo precisava ser feito e não demorei muito para bolar um plano e colocá-lo em prática. Juntei-me a um tal de Valter, menino rechonchudo que era sempre excluído das brincadeiras pelos outros alunos por ser meio bruto. Isso para não falar da discriminação que ele sofria na hora da merenda. Formamos uma dupla e começamos a fazer com o que os outros alunos me emprestassem o material e dessem para o Valter o pudim da sobremesa. Eles sempre perguntavam no início por que deveriam fazer aquilo:
- Porque caso contrário vou fazer pipi no seu colchonete na hora da sonequinha e vão pensar que você precisa voltar a usar fraldas – disse para o Marcinho.
- Porque vou contar para todas as professoras que você anda mostrando a calcinha para os meninos, arruinando assim sua fama na alta sociedade para conseguir um marido, lhe restando apenas a carreira de modelo de catálogo de lingerie por atacado – falei para a Aninha mostrando o meu lado mau precoce.
- Porque eu vou te morder todo – afirmou o Valter deixando transparecer que seu humor não era dos melhores antes da merenda.
Nosso projeto foi um sucesso. Em menos de dois meses, meus desenhos pareciam obras de Monet com tamanha diversidade à minha disposição. Já o Valter morreu de uma crise hiperglicêmica que ninguém soube explicar, pois a alimentação da escola era balanceada conforme orientações de um nutricionista que acabou demitido. Ainda assim, eu estava convencido que essa seria a melhor forma de obter qualquer coisa que quisesse.
Passados alguns anos, ainda criança, lá estava eu tramando novamente, agora no pracinha do bairro. Meu objetivo não era mais material escolar, mas as tão desejadas caixinhas de estalinhos. Mamãe raramente me dava dinheiro para comprar estalinhos, enquanto as mães das outras crianças que lá frequentavam torravam uma grana abastecendo verdadeiros arsenais. Tanto que era possível escutar a praça de quase três quarteirões de distância por conta da enormidade do som dos estalos.
Daquela vez montei um plano mais complexo, só que para dar início a ele, precisaria de mais do que um parceiro. Arrumei então dois comparsas da mesma idade que a minha. Jeferson era um menino que vivia com o nariz escorrendo e quase não curtia estalinhos, porque, ao manuseá-los com seus dedos cheios de meleca, eles não estouravam. Mariana era uma menina histérica que não suportava que jogassem estalinhos perto dos seus pés. Fizemos então um movimento digno de planejamento militar. Primeiro, tomamos posse da casamata da praça. Ela era uma casinha que ficava em um patamar elevado com alguns brinquedos embaixo. Para chegar nela, existiam três escadas. Para descer, tinham seis tipos diferentes de escorregas. Era o objeto de consumo de toda criança. Elas ficavam subindo por um lado e descendo pelo outro incansavelmente, como se fosse uma linha de produção frenética. A criança entrava ofegante na forma de matéria-prima na casinha que era a máquina, depois saía do outro lado histérica, deslizando escorrega abaixo, como um produto acabado barulhento.
A conquista aconteceu da seguinte forma: coloquei a Mariana dando chilique no topo de uma das escadas, obrigando assim as crianças a subirem pelas outras duas escadas. Ao subirem, elas se deparavam com o Jeferson ameaçando passar a mão emporcalhada com suco de meleca caso não dessem estalinhos. Rapidamente conseguimos uma boa quantidade de estalinhos para brincar por um dia. Contudo não era suficiente, precisávamos de mais e a maior parte deles estava com as crianças que não gostavam tanto assim de subir na casinha. Foi aí que iniciei a segunda parte do plano. Enquanto Mariana e Jeferson agiam no topo das escadas, comecei a usar uma parte dos estalinhos que eles conseguiam como munição nas crianças que ficavam no chão. Elas não tinham força para revidar, por conta da altura em que eu estava, e passaram a implorar para que parasse com aquilo. Foi aí que começamos a condicionar o fim dos ataques ao fornecimento de estalinhos, criando um círculo vicioso em que somente eu saía ganhando.
Infelizmente, o plano durou apenas um mês. Tive severas baixas na minha equipe. Primeiro foi a Mariana que não pode mais ir, pois teve de operar a garganta. Acho que ela estourou as cordas vocais de tanto gritar. Depois foi o Jeferson que, de tanto assoar o nariz, arrebentou a cartilagem daquela região e ficou com a sua torneirinha nojenta pendurada. Dizem que ele fez uma plástica que o deixou parecido com o Michael Jackson, mas nunca confirmei.
Não sei foi crise de culpa ou trauma, mas o fato é que fiquei um bom tempo sem maquinar planinhos daquele tipo até o fim da minha adolescência. Já estava no cursinho preparatório para o vestibular quando estourou a maior febre de álbum de figurinhas da Copa do Mundo. Eu não somente precisava colecionar, como era uma obrigação completar aquele álbum. O único porém era que continuava duro como nunca. Não tinha dinheiro para o álbum, sequer para um envelope de figurinhas. Todavia, em um curso pré-vestibular ameaças de pracinha e colégio não costumavam funcionar com tanta facilidade. Precisava então de algo mais enfático. Foi aí que surgiu o Arnaldo, um cara burro como uma gaveta empenada, mas amedrontador como um ônibus sem freio em uma ladeira. Ele nem curtia tanto assim álbum de figurinhas, mas era tão sádico, que topou de primeira com um sorriso demente no rosto.
Definida a dupla, o próximo passo seria determinar qual grupo de alunos em um pré-vestibular seria submisso a uma sequência de ameaças. Assumo que foi simples, o alvo seria os alunos dedicados aos cursos de exatas, mais precisamente, os retardados tarados por matemática. Só que ali residia um pequeno problema, eles não curtiam álbum de figurinhas. Eles colecionavam gibis, bonequinhos de super-herói, assistiam desenhos animados japonês, mas álbum de figurinhas para eles era coisa de criança. Da necessidade de alcançar a meta surgiu a sofisticação do plano. Passamos a ameaçar os retardados estranhos para obter a resolução das questões de física e matemática das provas mais difíceis. Depois trocávamos a nossa aquisição por figurinhas com os alunos que tinham enorme dificuldade nessas disciplinas, os que iriam concorrer às vagas para direito. Era perfeito. Completei o álbum em uma semana. Depois completei mais doze álbuns os quais vendi no mercado paralelo para fazer uma poupancinha e por fim encerrei as atividades nessa área. Já o Arnaldo, frustrado que tudo terminou sem uma turbulência qualquer, optou por seguir por conta própria em carreira solo. Agora ele continua achacando os estranhos das calculadoras para receber as questões resolvidas, as quais ele troca com alunos candidatos à medicina por remédios tarja preta que eles desviam com ajuda dos pais médicos.
Sucesso nos esquemas, fracasso total no vestibular. Passei o resto da vida com um diploma de ensino médio e disputando empregos de qualidade duvidosa. Especialmente para quem teve a oportunidade de desde cedo estudar em uma das melhores escolas da cidade. Por muitos anos me contentei trabalhando no controle de tíquetes de estacionamento de um grande shopping da região. Os lojistas de lá não tinham direito a estacionamento gratuito. Se quisessem parar o carro lá dentro, pagariam como qualquer cliente. Já os seguranças da noite, diferentemente dos seguranças do dia, não ganhavam vales para usar na praça de alimentação, ganhavam marmita. Bem, cada um com o seu problema. O meu era a total ausência de charme para recorrer caso quisesse conquistar alguma garota. Convenhamos, existia ali uma perfeita equação matemática de fácil resolução e total equilíbrio entre suas variáveis.
O novo esquema começou então de uma maneira que remetia à ingenuidade e a uma simples camaradagem. Durante duas semanas, ofereci adulterar os tíquetes de estacionamento dos lojistas, colocando o período mínimo que dava direito à gratuidade. O resultado foi 78 lojistas com o tíquete de um dia apenas adulterado. Quem notasse algo, diria que foi apenas uma “quebrada de galho”. E, convenhamos, teria sido se a ação parasse ali. Só que o meu plano se iniciou oficialmente na terceira semana, quando os seguranças da noite, sob minha coordenação, começaram a abordar os 78 lojistas na hora da saída dizendo que sabiam que houve uma fraude no tíquete deles na semana anterior. Os lojistas assustados me procuravam pedindo para limpar a barra deles, pois, assim como eu, não podiam se dar ao luxo de perder aquele emprego por pior que fosse. Com todos os atores devidamente absorvidos pela trama, o esquema se prolongou por diversos anos. Uma vez por semana adulterava o tíquete de cada lojista, em troca eles me dava um vale-lanche que era repassado para os seguranças da noite. Com o tempo, alguns lojistas iam embora para outros empregos, mas sempre aumentava a quantidade de participantes conforme os novos chegavam. Alguns no momento da entrevista já eram avisados do esquema. Coisa linda, não?
A sutileza da coisa naquele esquema residia no fato que a parte frágil, os lojistas, não imaginava onde eu obtinha vantagem. Essa era a chave do sucesso, pois meu pacto era com os seguranças, pessoas de confiança que jamais me deixariam na mão. O meu ganho na história era total o acesso ao shopping depois do encerramento de suas atividades. Levava uma vez por semana uma garota para lá. Era tudo nosso. Elas ficavam boquiabertas em ter tamanha exclusividade e, ao mesmo tempo, a minha suposta influência era um afrodisíaco. Ainda assim, combinava com os seguranças que por mês, abriríamos apenas três lojas para desviar uma pequena peça para presentear as meninas. Eu sei que eles faziam coisas piores, mas a genialidade do meu plano era não deixar rastros notáveis. Ninguém percebia a subtração de uma calça jeans ou vestido. Até porque o inventário era feito uma vez por semana e o desvio acontecia em uma data distante para assim parecer um furto de cliente.
O plano cedeu quando os seguranças foram demitidos por estarem muito além do peso exigido para a função. Os novos não pareciam facilmente corruptíveis. Como consequência, tinha uma vasta lista de lojistas insatisfeitos por terem de voltar a pagar o estacionamento integralmente. Eram como uma horda de viciados que teve seu fornecimento de drogas interrompido repentinamente. Daí aconteceu o inevitável, me denunciaram e fui mandado embora. Como não recebi sequer uma carta de recomendação, foi duro arrumar novas oportunidades.
Fiquei desde então pulando de emprego em emprego, sendo que na maioria não durava mais do que quatro anos. Passei por uma empresa de contabilidade na qual, com a ajuda de um faxineiro com problemas psiquiátricos, usávamos os e-mails particulares dos contadores para obter vantagens no contracheque. Depois fiquei em uma empreiteira que, graças a dois operários ex-presidiários incorrigíveis, consegui material suficiente para reformar a minha casa toda. Já coloquei pelo de rato em pote de sorvete para depois descobrir “acidentalmente” e chantagear o dono da fábrica. Quando fiquei em uma clínica médica, mudava os exames para que as esposas estivessem grávidas de uma suposta traição e tirar então vantagem com essa informação privilegiada.
Hoje tenho 63 anos e estou internado em uma espécie de asilo psiquiátrico. Meus parentes, cansados dos meus intermináveis planinhos e tramoias, aqui me deixaram para tratamento. Neste exato momento estou trancafiado em um quarto escuro de ridículos 4 metros quadrados enquanto o diretor decide o que fazer comigo. Ele descobriu que, com a ajuda dos enfermeiros da madrugada, montei um novo projeto para obter vantagem sobre os outros internos. Provavelmente ele vai entrar em alguns minutos perguntando qual vantagem estava obtendo agora. Estou em dúvida em qual mentira contarei para ele. Já pensei em falar que é para conseguir dinheiro para os enfermeiros comprarem coisas para mim lá fora, mas sabemos bem que os internos não têm dinheiro. Cogitei em alegar que pedia cigarros, só que todos sabem que não fumo. Outra hipótese foi conseguir os comprimidos deles, contudo não faz sentido, pois os mais pesados eu já ganho. Acho que terei de contar a verdade para ele, mesmo sabendo que não acreditará em mim ao falar que estava apenas entediado e coagia os internos para poder espremer aqueles cravos enormes que eles têm nas costas.

Próximo conto da coleção: Uma história com conteúdo