quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Volúvel

Anita
- Você está viajando! Não faz o menor sentido!
Apesar da afirmação de Anita, a Gabi não estava viajando. E, sim, fazia total sentido. Os sinais ficavam cada vez mais evidentes. Qualquer pessoa mais próxima dela era capaz de notar o que Gabi tinha dito. Com um mínimo de esforço e alguma memória, era possível ligar os pontos.
- Anita, por favor, seja razoável. A cada cinco frases, em uma delas você fala o nome dele. Você muda totalmente quando ele está por perto. Até seu comportamento em sala de aula é diferente quando é com matéria dele.
- Para, Gabi! Você está vendo coisas onde não tem. Somos amigos. Amigos, não! É muito forte. Temos uma relação bacana. Gosto de estar com ele. Admiro a inteligência dele. A conversa é sempre interessante. Além de ele ser divertido comigo. Mais nada.
Anita estava convicta que era tudo sempre coisa da cabeça da Gabi. Inclusive durante esta conversa que aconteceu quando estavam no terceiro período da faculdade. No primeiro período, os sinais eram fracos. Contudo, uma pessoa com um olhar mais atencioso perceberia algo de estranho no ar.
- Quem é ele?
Anita perguntou para a Gabi quando um professor interrompeu a aula delas para conversar no corredor algo com a professora. Obviamente a Gabi não tinha a menor ideia de quem se tratava. Afinal, não tinha nem duas semanas que elas estavam na faculdade. Por sorte, uma aluna repetente que estava por perto ouviu e tentando ser simpática respondeu. Era o professor Guilherme, mais conhecido como Gui.
- Ele faz um tipo bonito, não? – Perguntou em seguida a própria veterana.
Meio embaraçada com a pergunta feita, Anita disfarçou. Disse que ficou curiosa pelo fato de ele interromper a aula e a professora ser tão solícita ao seu pedido de conversar em particular. Ela insistiu na teoria que ficou intrigada achando que se tratava de algum cargo maior na instituição, tipo o coordenador ou reitor. A veterana riu da suspeita da Anita. O professor Guilherme nem chegava perto de ser uma autoridade na instituição. Mesmo assim, era mais famoso que o próprio reitor. Ele era talvez o professor mais popular da faculdade e, por isso, existiam várias histórias sobre ele. Ou era ao contrário, ele era famoso por conta das histórias.
- E vamos ter aulas com ele? – Anita continuava perguntando sobre o tal professor.
Antes que a veterana pudesse responder ou que a Gabi conseguisse notar algo de estranho no incansável questionamento de Anita, a professora retornou à sala e deu prosseguimento a aula. Frustrada e ainda curiosa, Anita se virou para trás e olhou para a veterana como quem cobra o que ficou faltando. A resposta veio na forma de um malicioso piscar de olho e um gesto com a mão indicando que teria muitas aulas.
- Mas eu guardei lugar para você aqui.
A Gabi estranhou quando Anita, no primeiro dia de aula do segundo semestre, escolheu se sentar na primeira fileira. Elas nunca foram do grupo do fundo da sala, todavia não eram de ocupar as primeiras fileiras. O estranhamento seria respondido quando o professor da disciplina entrou em sala. Era o Guilherme com suas tradicionais calças jeans surradas e justas. Gabi achou aquela imagem tão interessante que cogitou se sentar também na primeira fileira. Depois refugou. Afinal, ele era bem mais velho que ela. Nunca curtiu homens mais velhos. Com esse mesmo pensamento, Gabi achou que a escolha da Anita de se sentar na primeira fileira era muito mais para ter foco que o professor em si. Por conta disso então, não enxergou o segundo sinal.
- Você teria um minutinho?
Assim que acabou a aula, Anita foi falar com o Guilherme. Ela, supostamente, tinha algumas dúvidas a tirar. Normalmente, ao final da aula, raramente alguém ficava para tirar dúvidas. Tudo que os alunos queriam no segundo período era pular fora da sala e ir para algum bar nas proximidades. Assim, ter alguém ao final para tirar dúvidas era estranho, ainda mais no primeiro dia de aula quando poucas coisas foram ministradas. De qualquer forma, o Guilherme, sempre simpático com os alunos, respondeu tudo de forma atenciosa para a Anita que não continha o rubor do seu rosto.
- E qualquer coisa você pode tirar dúvidas na minha sala também. Fica no oitavo andar perto da sala de vídeo.
Pronto! A deixa foi dada e Anita não permitiria que ela escapasse. O problema é que ela interpretou isso como um sinal, quando, na verdade, era um procedimento comum do Guilherme. Ele diariamente recebia alunos em sua sala para tirar dúvidas ou apenas para conversar amenidades. Muitos iam para pedir conselhos sobre carreira. Outros queriam a opinião dele sobre relacionamentos, mesmo se tratando de um solteiro convicto. A sua sala, sem sombra de dúvidas, ela uma parte menor e separada do pátio central da universidade onde os alunos socializavam. Talvez por isso ele fosse tão famoso.
- Amiga, hoje não vai dar para voltar com você. Tenho de fazer uns negócios aqui. Amanhã nos vemos, tá?
Com essa desculpa, Anita se desvencilhou de Gabi que costumava voltar com ela. Apenas dois dias tinham se passado da primeira aula e lá ia a Anita para a sala do Guilherme. Em sua cabeça, era algo que a amiga não podia saber.
- Olá, mocinha! Sente aí!
A simpatia de Guilherme era algo indiscutível. Na cabeça de uma aluna desacostumada com o jeito dele, isso poderia fazer as conexões neurais pifarem. Foi isso que aconteceu. Anita se sentiu mais acolhida do que devia e por lá ficou por quase duas horas. Sua certeza de que era algo além do que exatamente estava acontecendo era tão grande que sequer falou das dúvidas que tinha inventando para ir até a sala do Guilherme. Falaram sobre várias coisas. Desde o ensino médio dela até as relações familiares. Filmes, música, comida e tipos de programa para se distrair foram temas da conversa. Uma das características da simpatia do Guilherme residia na sua capacidade de ouvir e demonstrar interesse no interlocutor, seja este interesse real ou não. Anita praticamente fez um monólogo e ele interagiu de tal maneira que, se dependesse dela, ela ficaria ali por dias falando. Tanto que, quando um aluno chegou para falar de um trabalho e acabou interrompendo a sua fala, Anita se despediu dizendo se lamentar por não ter escutado nem uma curiosidade sobre o Guilherme.
- Ah nem grila com isso. Qualquer dia você volta aqui e eu fico falando horas sobre mim. Combinado?
Claro que ele estava apenas sendo simpático. É óbvio que ela entendeu errado e voltou à sua sala no primeiro dia da semana seguinte. E dois dias depois. E na semana seguinte. Era uma rotina que estava tanto no automático que Anita se esqueceu de disfarçar e a Gabi percebeu. Pelo menos, duas vezes por semana ela ficava um bom tempo na sala do Guilherme de conversa com ele. Durante a aula, Anita sempre chegava bem antes, se sentava na primeira fileira, era participativa, saía por último e ainda assim ficava um pouco de papo com ele ao final.
Ele sabia de tudo sobre ela de tanto que Anita falava. Em contrapartida, ela pouco sabia sobre ele. O pouco que ouviu Guilherme falar foi suficiente para constatar que eram incompatíveis em vários quesitos. Não gostavam do mesmo estilo de música e, por consequência, não frequentavam os mesmos lugares na noite. Filmes era outro tema que discordavam em predileção. Mesmo diante de tal sinal, Anita acreditava que existia uma conexão naquela incompatibilidade. Ela achava que a curiosidade de um querer conhecer o outro só existia por conta das diferenças. Na verdade, Guilherme estava sendo apenas um bom ouvinte. Ele poderia até ter algum interesse em saber um pouco sobre a vida da aluna. Contudo isso não denotava interesse propriamente nela.
- E como vou viver nas férias?
Anita brincou ao se despedir de Guilherme no final do semestre. Obviamente, ele não deu corda para a brincadeira, o que fez Anita insistir. Dessa vez, ela fingiu que teria algumas entrevistas de emprego no período de férias e gostaria de alguns conselhos dele quando estivesse mais perto das datas. Guilherme cedeu e deixou que ela tomasse nota do número do seu celular. Bastaram duas semanas:
- E aí, moço? Está curtindo as férias?
Foi com essa abordagem chapa branca que se iniciou o maior diálogo de todos. A conversa entre eles nunca mais terminou. Não estou dizendo que ficaram dias de papo ininterruptamente. Digo apenas que a conversa ia fluindo manhã, tarde e noite como se não tivesse fim. Em alguns momentos, ficavam horas a fio se falando pelo celular. Em outras ocasiões, a resposta demorava horas. Foi assim durante todo o período de férias. Era algo tão contínuo que até a postura de Guilherme mudou um pouco. O que era antes um homem ouvinte, agora estava mais falante. Ele, indiscutivelmente, se sentia mais à vontade para falar de sua intimidade e particularidades com Anita. Agora, não era apenas ela quem dava iniciativa a conversa. Guilherme passou a puxar o assunto também. Em alguns casos, ele até brincava de se lamentar quando ela se despedia e não podia dar prosseguimento no momento. Quando faltava menos de um mês para o retorno às aulas, os dois começaram a deixar claro que estavam com saudades das conversas pela faculdade.
- Ora, não precisamos esperar as aulas voltarem. Podemos nos ver hoje.
A forma como Anita propôs provocou certo desconforto no Guilherme. Tanto que ele recuou e pode notar o que estava acontecendo. Algo ali lhe desagradou. Guilherme teve pensamentos que não o deixou confortável com a situação. Sua escolha foi a de ficar na defensiva.
- Você está chateado comigo? – Com essa pergunta, Anita entrou na sala de Guilherme no primeiro dia de aula do semestre seguinte.
- Não, não estou. Por que pergunta isso?
- Você ficou frio nas últimas semanas. Quase não responde mais as minhas mensagens e, quando o faz, demora muito tempo, inclusive dias.
- Andei ocupado e outras coisas ocuparam a minha cabeça.
Mentira. Guilherme percebeu que aquela menina despertou algo em sua cabeça e isso era a última coisa que ele queria no momento. Para ele, tratava-se de algo tão inapropriado ou inoportuno, que o distanciamento era a melhor solução. Todavia, ele tinha uma forma muito franca de lidar com os alunos. Logo, mudar a maneira de lidar com a Anita deixava bem claro que algo estava errado. Ele então tentou voltar a ser com a Anita o mesmo Guilherme que era com os demais alunos. Fatalmente ele falharia e acabou falhando. Com as visitas frequentes de Anita em sua sala e a troca de mensagens que até então estavam acontecendo de maneira contida por Guilherme, ele acabou cedendo e, quando percebeu, já estava envolvido novamente. As mensagens começaram a ficar frequentes, assim como as visitas dela que passaram a acontecer todos os dias. Foi aí que a Gabi desconfiou de algo maior e chamou a Anita para a tal conversa.
- Amiga, preste atenção no que estou falando. Saia da defensiva. Você nem tem aula hoje e veio para a faculdade para ficar na sala dele de papo. Como que você quer sustentar qualquer teoria diferente de o Guilherme ter um efeito sobre você?
- Gabi, estou te falando. Apenas gostamos de conversar. A companhia dele é legal. Não estou entendendo a sua preocupação.
- Anita, você conhece as histórias dele desde o primeiro período. Ele é famoso por pegar várias alunas. Cedo ou tarde vai te pegar. Se não te pegou ainda. E minha preocupação é exatamente você estar gostando dele. Você vai se machucar com algo que estou tentando prever para te ajudar.
- Eu não estou gostando dele. Por que não acredita em mim?
- Porque nunca mais te vi dando trela para outra pessoa. Desde as festas do primeiro período que não te vejo flertando com outra pessoa ou insinuando estar interessada em alguém. Quando foi a última vez que ficou com alguém?
Anita não respondeu, desconversou e depois se levantou. Era gritante o que estava acontecendo. Naquele semestre, as coisas foram crescendo em proporções injustificadas. Eram visitas quase diárias. Mais tarde, quando chegavam em casa, trocavam mensagens pelo celular. O dia seguinte sempre começava com a mensagem de um deles. Esse ritmo durante a semana não era mais suficiente. Começaram a se ver aos domingos. Davam voltas pela orla, se deitavam na grama do parque ou apenas andavam de ponta a ponta de uma feira de rua provando frutas. Falavam sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Assuntos rasteiros, divagações profundas sobre carreira e outras masturbações verbais. Apenas sobre uma coisa eles não falavam, vida amorosa. Guilherme nunca perguntou ou insinuou com indiretas ter interesse em saber dessa parte da vida de Anita. Ela, por sua parte, nunca quis saber da dele. Na realidade, sempre quis saber, principalmente depois que ouviu de Gabi que ele pegava várias alunas. O que ela não queria era ouvir a verdade.
Já para o final do semestre, teve o aniversário da Anita. Ela marcou com as amigas e parentes em um bar pequeno próximo de casa. Foi aquela mesa enorme. Falatório alto, risadas e muitas bebidinhas e comidinhas. Apesar de a noite ter sido bastante divertida e animada, Anita não estava satisfeita por completo. Vez ou outra ela esticava o olhar para a outra ponta da mesa e via uma cadeira vazia. Estava faltando uma pessoa. Guilherme não foi. Gabi percebeu que ela estava um pouco chateada e conseguia entender facilmente o motivo. Para ela, aquela seria uma oportunidade de ouro, pois tinha ido à festa com um plano traçado. Gabi apresentaria um amigo à Anita naquela noite. Ela precisava começar a se interessar por outra pessoa.
- Amiga, esse é o Fernando. Aquele menino que te falei que faz engenharia civil lá na faculdade.
Gabi nem esperou os dois terminarem os dois beijinhos tradicionais de cumprimento de cariocas. Ela se virou e foi se sentar longe dos dois. Até que eles se deram bem. O Fernando tinha uma conversa boa. Em poucos minutos, ele conseguiu deixar a Anita confortável a ponto de rir de comentários engraçadinhos. As horas passavam, os convidados iam embora e lá estavam os dois de conversa em uma ponta da mesa. Já para o final, após fechada a conta da mesa, Fernando propôs à Anita que fossem para outro lugar. Ela topou. Andaram até o carro dele e, antes que colocasse a chave na ignição, Fernando a beijou. Foi curto, foi bem morno, foi esquecível. Anita sorriu sem graça.
- Olha, Fernando. Você parece ser um cara bem legal. Acontece que infelizmente a minha cabeça está em outro lugar. Peço que me desculpe. Adoraria ter te conhecido no ano passado noutra época. Posso te pedir apenas uma coisa? Se não for pedir muito, me dê uma carona até um local?
Com a carona do solícito Fernando, Anita chegou a um pub chamando On The Rocks. Era daqueles pubs que as pessoas compram as bebidas e ficam na rua mesmo porque no espaço interno mal os garçons conseguem se locomover. Com a sensação de ter o coração preso na garganta, ela começou a procurar pelo Guilherme. Aquele era o lugar favorito dele. Ela sabia disso, mesmo nunca tendo sido levada por ele para lá. Seu receio era encontrar o Guilherme com outra mulher. Ou pior do que isso, com outra aluna. Como uma assombração, ela vagou entre pequenos grupos, casais e bêbados solitários. Em certo momento, Anita viu o Guilherme e respirou aliviada. Ele estava só.
- Você não foi ao meu aniversário. Por quê?
- Não sei.
- Como não sabe? Você deixou de ir ao meu aniversário para ficar aqui escorado em um poste bebendo sozinho. Qual a razão disso?
- Já disse, não sei.
- Você ao menos refletiu sobre? Ficou mais de dois minutos pensando se deveria ir ou não?
- Anita, por favor...
- Não tem por favor, Guilherme. Eu te chamei para o meu aniversário. Você sabia que estava muito empolgada para ele e queria que estivesse lá.
- Ah, Anita, estamos lá todos os dias. Digo, estamos juntos todos os dias.
- EXATO! Estamos juntos todos os dias. Todo santo dia! E logo no meu aniversário você resolve sumir?
- Eu não sumi. Tanto que me achou com facilidade.
- EU TE ACHEI! Eu tive de te achar porque você sumiu. Você não apareceu onde pedi. Sequer mandou uma justificativa. Aliás, ainda nem se desculpou por isso.
- Anita, tente entender...
- Não, Guilherme! Não tem o que entender. É tudo muito pior porque você sequer mandou uma mensagem de feliz aniversário. Qual é a sua desculpa de não ter enviado uma mensagem de feliz aniversário? Nós nos falamos todos os dias. Se pegar o seu celular aí, você verá a conversa de ontem. Se eu te pedir para me falar qual foi a última palavra que foi dita anteontem você vai demorar uma eternidade para responder. Sabe por quê? Porque nossas conversas são intermináveis. Ficamos horas e horas nos falando todos os dias. Você vai precisar de quase uma hora para passar toda nossa conversa de ontem até achar a de anteontem. Daí eu te pergunto, como pode uma pessoa que fica tanto tempo conversando com outra, dia após dia, não ter enviado uma mensagem de feliz aniversário? Apenas uma maldita e curta mensagem escrito feliz aniversário. Não faço questão de um texto enorme, como você já mandou algumas vezes para me consolar nas minhas fases cabisbaixa por conta de nota. Nem mesmo exijo a escolha de palavras bonitas como costuma fazer para me descrever quando fico boquiaberta com as coisas que me apresenta. Queria apenas um feliz aniversário. Queria apenas você sentado do outro lado de uma mesa com trezentas pessoas. Podia até estar calado como está agora. Mas estaria lá e isso me faria muito feliz. A sua ausência hoje, a sua indiferença e sua passividade mediante a minha exposição aqui machuca. Ela joga fora tudo que convivemos. Tantas conversas, tanta cumplicidade, tanto companheirismo. É como se nada tivesse acontecido antes. Estou me sentindo uma estranha à sua frente. Vamos fazer o seguinte. Vamos fingir que esteve ocupado o dia todo e marcamos aqui para comemorar o meu aniversário. Estou acabando de chegar e você me dá os parabéns.
- Feliz aniversário.
- Ah, mas nem a pau que você vai me dar essa merda de feliz aniversário borocoxô. Em dia de ressaca você me recebe muito mais empolgado em sua sala. É mocinha, gatinha, minha linda. Até quando quer implicar comigo me chamando de mala e carrapata, você fica mais fofo e autêntico. Pode tentar novamente.
- Feliz...
- Ah, espere! Eu quero um beijo também.
- ANITA!
- Anita o quê?
- Você está bêbada?
- Não, não estou bêbada. E, se estivesse, não teria te pedido isso. Já teria feito. Anda! Um feliz aniversário amável terminado com um beijo melhor que a coisa sem graça que acabei de receber do menino que me deu carona.
- Você beijou outra pessoa?
- Se aquilo pode ser chamado de beijo, sim. Por quê? Está com ciúmes? Te incomoda imaginar outra pessoa encostando a boca na minha? Nossas línguas se tocando, quentes e molhadas, é ruim de imaginar? A ideia de saber que desejei beijar outra pessoa te dá náuseas?
- Anita...
- Relaxa. Você está branco. Era um amigo que a Gabi tentou empurrar para cima de mim. Ele veio me dar um beijinho. Foi uma merda de cinco segundos. Nem deu para molhar a língua. Anda! Para de drama e rodeios. Feliz aniversário e aquele beijo que nunca mais esquecerei.
- Não, eu não vou te beijar. Ainda mais depois de ter beijado um moleque qualquer.
- Ah, mas você é muito ordinário mesmo. Beijou várias por aí. Deve ter uma coleção de saliva de aluninhas na sua boca e quando é comigo quer bancar o correto.
- Não é querer bancar o correto. É que com você não posso fazer.
- Por que não pode?
- Porque você está apaixonada por mim.
Anita não respondeu. Se fosse a Gabi no lugar do Guilherme falando a mesma coisa, ela teria várias respostas e argumentos prontos para tentar negar o inegável. Contudo, aquela mesma frase vindo do Guilherme era uma verdade que surgia como uma mordaça que não dava a oportunidade de rebater. A quem Anita queria enganar? Se tentar mentir para a Gabi era complicado, imagine para ele. Não, para ele não era possível mentir. Ainda mais porque tudo que Anita queria era confirmar isso para ele. Ela precisava externar aquilo. Era preciso expor todo aquele sentimento tolhido que ela secretamente cultivava em uma relação de amizade estranhamente intensa.
- É isso, Anita. Eu não posso. Você não é uma menina que age como uma pipa avoada como eu. Não seria capaz de sair com você e no dia seguinte fingir que nada aconteceu. Seria bastante constrangedor te receber na minha sala na manhã seguinte e ter de falar para a pessoa que está apaixonada por mim que foi apenas uma noite. Você acha que conseguiria manter o contato comigo depois disso?
- CLARO QUE NÃO! Assim como não vou conseguir depois de hoje. Acha que é fácil seguir como se nada tivesse acontecido depois de ouvir de você que sabe que estou apaixonada, mas a recíproca não é verdadeira? Acha mesmo que, depois desse discurso, eu vou conseguir manter contato com você? Você acaba de me dar o pior aniversário da minha vida. Você é capaz de entender isso?
- Anita, isso que disse foi unicamente para o seu bem. Preciso que entenda que...
- Para o meu bem? Se fosse para o meu bem, você não continuaria dando corda até hoje. Se fosse mesmo para o meu bem, você sabendo que estava apaixonada, iria cortando aos poucos. Exatamente como fez quando te chamei a primeira vez para uma volta nas férias e você sumiu até o início das aulas. Não, Guilherme, não é para o meu bem. É para o seu bem. É para a sua maldita covardia. Porque isso que você é! Você é um covarde que tem medo de se envolver comigo. Fica me mantendo por perto. Deixa que eu fique ao redor massageando seu ego. Sou o seu relacionamento perfeito. Só que na hora de satisfazer seus desejos, prefere procurar pessoas desapegadas aleatórias. Você quis sair como o correto, mas escute, o que você está fazendo é muito pior do que dar um beijo de feliz aniversário em uma pessoa apaixonada. Isso que você faz não é legal, machuca e torna a minha vida muito mais difícil.
- E você acha que as coisas são fáceis para mim? Você acha que é tranquilo ter uma diabinha como você no meu ombro todo dia? O que você acha que passa na minha cabeça? Nada? Exato! Nada! Porque não tem espaço para mais coisas alguma. Tudo que penso dia e noite é você. Sonho com você. Acordo e vou correndo para o celular esperando ter alguma mensagem sua. Se não tem, eu mando porque não consigo esperar. Conto os minutos para você aparecer na minha sala e me tirar horas de produtividade para falar nada. Eu não faço mais coisa alguma da vida a não ser pensar em Anita. Só que eu não consigo me livrar disso. Até porque eu não quero. Ainda assim, sei que isso não é saudável ou recomendado.
- Como não é saudável? Somos duas pessoas que se gostam. Qual o problema nisso?
- Como vou ter um relacionamento com uma menina de 19 anos? Como posso assumir um relacionamento com uma aluna de 19 anos?
- Guilherme, a universidade toda fala de nós dois. O dia que assumir algo comigo não será surpresa alguma para as outras pessoas.
- Mesmo assim! Você tem 19 anos.
- Qual o problema nisso?
- Sabe quantos homens da minha idade se relacionam com meninas da sua idade? Sabe quantos desses homens que se relacionam não se passam por pervertidos? Nenhum! Porque todo mundo sabe que um homem da minha idade saindo com uma menina da sua é perversão. Não existe compatibilidade. É uma diferença de gerações.
- Você está doido, Guilherme. Até concordo que, na maioria, relacionamento com essa diferença de idade fica parecendo perversão. Só que no nosso caso é diferente. Nós temos compatibilidade. Como ficaríamos horas nos falando se não tivéssemos? Saímos junto todo final de semana. Não existe diferença de cabeça ou de gerações aqui. Pare de tentar sustentar seu medo em desenvolver um relacionamento comigo na nossa diferença de idade.
- Não é a diferença, Anita. É a sua idade. Você é muito nova. Você ter 19 anos é muito assustador para um homem da minha idade.
- O que você sugere? Que vamos ficar nessa convivência louca e agora assumida até eu completar... sei lá... até meu aniversário de 21 anos? É uma boa idade para você?
- Não sei. Tudo que eu queria era que você fosse uma veterana prestes a se formar. Tornaria tudo mais fácil.
- Só que eu não sou. Para piorar, o curso de engenharia demora 5 anos. Temos 3 anos e meio pela frente. Como vamos fazer? Porque agora que tudo isso foi dito, nada será mais como antes. Lembra-se de quando disse estar preocupado em como agir naturalmente no dia seguinte caso me desse o beijo? Agora é muito pior. Acha que consegue me receber na segunda-feira depois disso tudo dito? Acha que teremos qualquer outro assunto que não seja esse? O cenário mudou, Guilherme. Precisamos tomar uma decisão agora. Não tem mais volta. Não dá mais para agirmos indiferentes ao que foi falado aqui.
- Eu sei, Anita. Eu sei. Podemos ao menos tentar...
- Tentar o quê, Guilherme?
- Tentar seguir como estávamos antes. Aguardar o tempo passar. Esperar o momento certo.
- Você quer me manter em banho-maria até o final da faculdade? É isso mesmo que entendi? Guilherme, na sua cabeça existe algum botão chamado stand by? Porque na minha não tem. Não existe. Eu vou enlouquecer se tiver que passar mais um semestre com você desse jeito. Sabe o que vai acabar acontecendo? Vai aparecer outro Fernando como hoje. Só que dessa vez ele vai ter pegada, vai despertar algo em mim e você vai me perder.
- Ótimo!
- ÓTIMO?
- CLARO QUE NÃO! Odiaria te perder e me culparia pelo resto da vida. Todavia, não posso negar que solucionaria essa aflição. Seria uma solução dolorosa, mas solucionaria.
- Aflição? Não existe aflição, Guilherme. Existe essa teoria de merda que você colocou na cabeça que não pode se relacionar com uma menina de 19 anos mesmo sendo assumidamente louco por ela.
- Eu sei disso. Eu sei! Só que eu não consigo. Não adianta. Só nos cabe esperar e ver o que acontece.
- Não, não nos cabe esperar coisa alguma. Cabe a você esperar. Eu não quero esperar. Isso é uma decisão sua. APENAS SUA! Isso não é justo. Eu não vou esperar. Eu não vou ficar à sua disposição por conta de uma teoria maluca. Eu não sou capaz de lidar com isso. Assim como não estou sendo capaz de lidar com essa merda de aniversário que você acabou de estragar. Escute, Guilherme. Nunca pensei que você fosse me decepcionar. Nunca mesmo. Sempre te achei um cara fascinante e por isso me apaixonei por você no primeiro minuto que te vi. Ainda assim você conseguiu. Você me decepcionou. Você acabou de me decepcionar e da maneira mais horrível que existe. Você destruiu o meu coração. Espero que o tempo que você precise para me superar seja, no mínimo, a metade do tempo que precisarei para cicatrizar o meu coração. Porque se for isso, você vai gastar o resto da sua vida. Adeus, Guilherme.
- Anita... Anita... ANITA!
Anita se foi e Guilherme não correu atrás. Na semana seguinte, ela não apareceu uma vez sequer na sala dele. Foram longos dias com o Guilherme olhando celular na expectativa de uma mensagem dela. Nada! Na sexta-feira, ele se esbarrou com a Gabi pelo campus. Tentando parecer descolado, ele perguntou pela irmã siamesa dela.
- Você não soube, né? Então, Guilherme, ela trancou a faculdade. Vai tentar transferência para outra no semestre que vem.
Guilherme nem agradeceu pela resposta da Gabi. Ele apenas se afastou e pouco mais à frente se sentou em um dos bancos de concretos do pátio. Pegou o celular e foi até o contato da Anita. Algo precisava ser feito. Aquilo não podia continuar daquela forma. Anita tinha tomado uma grande decisão na sua vida por conta de uma teoria dele. Guilherme se sentia culpado por ter permitido que ela se envolvesse, que ele se envolvesse e que o ápice tenha sido daquela forma desastrosa. Sem enxergar outras opções, Guilherme não hesitou e apagou o contato de Anita. Na cabeça dele, a vida precisava seguir com cada um sofrendo em caminhos diferentes.


Outro conto da coleção? Leia Fátima