Anita
- Você está viajando! Não faz o menor
sentido!
Apesar da afirmação de Anita, a Gabi
não estava viajando. E, sim, fazia total sentido. Os sinais ficavam cada vez
mais evidentes. Qualquer pessoa mais próxima dela era capaz de notar o que Gabi
tinha dito. Com um mínimo de esforço e alguma memória, era possível ligar os
pontos.
- Anita, por favor, seja razoável. A
cada cinco frases, em uma delas você fala o nome dele. Você muda totalmente
quando ele está por perto. Até seu comportamento em sala de aula é diferente
quando é com matéria dele.
- Para, Gabi! Você está vendo coisas
onde não tem. Somos amigos. Amigos, não! É muito forte. Temos uma relação
bacana. Gosto de estar com ele. Admiro a inteligência dele. A conversa é sempre
interessante. Além de ele ser divertido comigo. Mais nada.
Anita estava convicta que era tudo sempre
coisa da cabeça da Gabi. Inclusive durante esta conversa que aconteceu quando
estavam no terceiro período da faculdade. No primeiro período, os sinais eram
fracos. Contudo, uma pessoa com um olhar mais atencioso perceberia algo de
estranho no ar.
- Quem é ele?
Anita perguntou para a Gabi quando um
professor interrompeu a aula delas para conversar no corredor algo com a
professora. Obviamente a Gabi não tinha a menor ideia de quem se tratava.
Afinal, não tinha nem duas semanas que elas estavam na faculdade. Por sorte,
uma aluna repetente que estava por perto ouviu e tentando ser simpática
respondeu. Era o professor Guilherme, mais conhecido como Gui.
- Ele faz um tipo bonito, não? – Perguntou
em seguida a própria veterana.
Meio embaraçada com a pergunta feita,
Anita disfarçou. Disse que ficou curiosa pelo fato de ele interromper a aula e
a professora ser tão solícita ao seu pedido de conversar em particular. Ela
insistiu na teoria que ficou intrigada achando que se tratava de algum cargo
maior na instituição, tipo o coordenador ou reitor. A veterana riu da suspeita
da Anita. O professor Guilherme nem chegava perto de ser uma autoridade na
instituição. Mesmo assim, era mais famoso que o próprio reitor. Ele era talvez
o professor mais popular da faculdade e, por isso, existiam várias histórias
sobre ele. Ou era ao contrário, ele era famoso por conta das histórias.
- E vamos ter aulas com ele? – Anita continuava
perguntando sobre o tal professor.
Antes que a veterana pudesse responder
ou que a Gabi conseguisse notar algo de estranho no incansável questionamento
de Anita, a professora retornou à sala e deu prosseguimento a aula. Frustrada e
ainda curiosa, Anita se virou para trás e olhou para a veterana como quem cobra
o que ficou faltando. A resposta veio na forma de um malicioso piscar de olho e
um gesto com a mão indicando que teria muitas aulas.
- Mas eu guardei lugar para você aqui.
A Gabi estranhou quando Anita, no
primeiro dia de aula do segundo semestre, escolheu se sentar na primeira
fileira. Elas nunca foram do grupo do fundo da sala, todavia não eram de ocupar
as primeiras fileiras. O estranhamento seria respondido quando o professor da
disciplina entrou em sala. Era o Guilherme com suas tradicionais calças jeans
surradas e justas. Gabi achou aquela imagem tão interessante que cogitou se
sentar também na primeira fileira. Depois refugou. Afinal, ele era bem mais
velho que ela. Nunca curtiu homens mais velhos. Com esse mesmo pensamento, Gabi
achou que a escolha da Anita de se sentar na primeira fileira era muito mais
para ter foco que o professor em si. Por conta disso então, não enxergou o
segundo sinal.
- Você teria um minutinho?
Assim que acabou a aula, Anita foi
falar com o Guilherme. Ela, supostamente, tinha algumas dúvidas a tirar.
Normalmente, ao final da aula, raramente alguém ficava para tirar dúvidas. Tudo
que os alunos queriam no segundo período era pular fora da sala e ir para algum
bar nas proximidades. Assim, ter alguém ao final para tirar dúvidas era
estranho, ainda mais no primeiro dia de aula quando poucas coisas foram
ministradas. De qualquer forma, o Guilherme, sempre simpático com os alunos,
respondeu tudo de forma atenciosa para a Anita que não continha o rubor do seu
rosto.
- E qualquer coisa você pode tirar
dúvidas na minha sala também. Fica no oitavo andar perto da sala de vídeo.
Pronto! A deixa foi dada e Anita não
permitiria que ela escapasse. O problema é que ela interpretou isso como um
sinal, quando, na verdade, era um procedimento comum do Guilherme. Ele
diariamente recebia alunos em sua sala para tirar dúvidas ou apenas para
conversar amenidades. Muitos iam para pedir conselhos sobre carreira. Outros
queriam a opinião dele sobre relacionamentos, mesmo se tratando de um solteiro
convicto. A sua sala, sem sombra de dúvidas, ela uma parte menor e separada do
pátio central da universidade onde os alunos socializavam. Talvez por isso ele
fosse tão famoso.
- Amiga, hoje não vai dar para voltar
com você. Tenho de fazer uns negócios aqui. Amanhã nos vemos, tá?
Com essa desculpa, Anita se desvencilhou
de Gabi que costumava voltar com ela. Apenas dois dias tinham se passado da
primeira aula e lá ia a Anita para a sala do Guilherme. Em sua cabeça, era algo
que a amiga não podia saber.
- Olá, mocinha! Sente aí!
A simpatia de Guilherme era algo
indiscutível. Na cabeça de uma aluna desacostumada com o jeito dele, isso
poderia fazer as conexões neurais pifarem. Foi isso que aconteceu. Anita se
sentiu mais acolhida do que devia e por lá ficou por quase duas horas. Sua
certeza de que era algo além do que exatamente estava acontecendo era tão
grande que sequer falou das dúvidas que tinha inventando para ir até a sala do
Guilherme. Falaram sobre várias coisas. Desde o ensino médio dela até as relações
familiares. Filmes, música, comida e tipos de programa para se distrair foram
temas da conversa. Uma das características da simpatia do Guilherme residia na
sua capacidade de ouvir e demonstrar interesse no interlocutor, seja este
interesse real ou não. Anita praticamente fez um monólogo e ele interagiu de
tal maneira que, se dependesse dela, ela ficaria ali por dias falando. Tanto
que, quando um aluno chegou para falar de um trabalho e acabou interrompendo a
sua fala, Anita se despediu dizendo se lamentar por não ter escutado nem uma
curiosidade sobre o Guilherme.
- Ah nem grila com isso. Qualquer dia
você volta aqui e eu fico falando horas sobre mim. Combinado?
Claro que ele estava apenas sendo
simpático. É óbvio que ela entendeu errado e voltou à sua sala no primeiro dia
da semana seguinte. E dois dias depois. E na semana seguinte. Era uma rotina
que estava tanto no automático que Anita se esqueceu de disfarçar e a Gabi percebeu.
Pelo menos, duas vezes por semana ela ficava um bom tempo na sala do Guilherme
de conversa com ele. Durante a aula, Anita sempre chegava bem antes, se sentava
na primeira fileira, era participativa, saía por último e ainda assim ficava um
pouco de papo com ele ao final.
Ele sabia de tudo sobre ela de tanto
que Anita falava. Em contrapartida, ela pouco sabia sobre ele. O pouco que ouviu
Guilherme falar foi suficiente para constatar que eram incompatíveis em vários
quesitos. Não gostavam do mesmo estilo de música e, por consequência, não
frequentavam os mesmos lugares na noite. Filmes era outro tema que discordavam
em predileção. Mesmo diante de tal sinal, Anita acreditava que existia uma
conexão naquela incompatibilidade. Ela achava que a curiosidade de um querer
conhecer o outro só existia por conta das diferenças. Na verdade, Guilherme
estava sendo apenas um bom ouvinte. Ele poderia até ter algum interesse em
saber um pouco sobre a vida da aluna. Contudo isso não denotava interesse
propriamente nela.
- E como vou viver nas férias?
Anita brincou ao se despedir de
Guilherme no final do semestre. Obviamente, ele não deu corda para a
brincadeira, o que fez Anita insistir. Dessa vez, ela fingiu que teria algumas
entrevistas de emprego no período de férias e gostaria de alguns conselhos dele
quando estivesse mais perto das datas. Guilherme cedeu e deixou que ela tomasse
nota do número do seu celular. Bastaram duas semanas:
- E aí, moço? Está curtindo as férias?
Foi com essa abordagem chapa branca
que se iniciou o maior diálogo de todos. A conversa entre eles nunca mais
terminou. Não estou dizendo que ficaram dias de papo ininterruptamente. Digo
apenas que a conversa ia fluindo manhã, tarde e noite como se não tivesse fim.
Em alguns momentos, ficavam horas a fio se falando pelo celular. Em outras
ocasiões, a resposta demorava horas. Foi assim durante todo o período de
férias. Era algo tão contínuo que até a postura de Guilherme mudou um pouco. O
que era antes um homem ouvinte, agora estava mais falante. Ele, indiscutivelmente,
se sentia mais à vontade para falar de sua intimidade e particularidades com
Anita. Agora, não era apenas ela quem dava iniciativa a conversa. Guilherme passou
a puxar o assunto também. Em alguns casos, ele até brincava de se lamentar
quando ela se despedia e não podia dar prosseguimento no momento. Quando
faltava menos de um mês para o retorno às aulas, os dois começaram a deixar
claro que estavam com saudades das conversas pela faculdade.
- Ora, não precisamos esperar as aulas
voltarem. Podemos nos ver hoje.
A forma como Anita propôs provocou
certo desconforto no Guilherme. Tanto que ele recuou e pode notar o que estava
acontecendo. Algo ali lhe desagradou. Guilherme teve pensamentos que não o
deixou confortável com a situação. Sua escolha foi a de ficar na defensiva.
- Você está chateado comigo? – Com essa
pergunta, Anita entrou na sala de Guilherme no primeiro dia de aula do semestre
seguinte.
- Não, não estou. Por que pergunta
isso?
- Você ficou frio nas últimas semanas.
Quase não responde mais as minhas mensagens e, quando o faz, demora muito
tempo, inclusive dias.
- Andei ocupado e outras coisas
ocuparam a minha cabeça.
Mentira. Guilherme percebeu que aquela
menina despertou algo em sua cabeça e isso era a última coisa que ele queria no
momento. Para ele, tratava-se de algo tão inapropriado ou inoportuno, que o
distanciamento era a melhor solução. Todavia, ele tinha uma forma muito franca
de lidar com os alunos. Logo, mudar a maneira de lidar com a Anita deixava bem
claro que algo estava errado. Ele então tentou voltar a ser com a Anita o mesmo
Guilherme que era com os demais alunos. Fatalmente ele falharia e acabou
falhando. Com as visitas frequentes de Anita em sua sala e a troca de mensagens
que até então estavam acontecendo de maneira contida por Guilherme, ele acabou
cedendo e, quando percebeu, já estava envolvido novamente. As mensagens
começaram a ficar frequentes, assim como as visitas dela que passaram a acontecer
todos os dias. Foi aí que a Gabi desconfiou de algo maior e chamou a Anita para
a tal conversa.
- Amiga, preste atenção no que estou
falando. Saia da defensiva. Você nem tem aula hoje e veio para a faculdade para
ficar na sala dele de papo. Como que você quer sustentar qualquer teoria
diferente de o Guilherme ter um efeito sobre você?
- Gabi, estou te falando. Apenas
gostamos de conversar. A companhia dele é legal. Não estou entendendo a sua
preocupação.
- Anita, você conhece as histórias
dele desde o primeiro período. Ele é famoso por pegar várias alunas. Cedo ou
tarde vai te pegar. Se não te pegou ainda. E minha preocupação é exatamente
você estar gostando dele. Você vai se machucar com algo que estou tentando
prever para te ajudar.
- Eu não estou gostando dele. Por que
não acredita em mim?
- Porque nunca mais te vi dando trela
para outra pessoa. Desde as festas do primeiro período que não te vejo
flertando com outra pessoa ou insinuando estar interessada em alguém. Quando
foi a última vez que ficou com alguém?
Anita não respondeu, desconversou e
depois se levantou. Era gritante o que estava acontecendo. Naquele semestre, as
coisas foram crescendo em proporções injustificadas. Eram visitas quase
diárias. Mais tarde, quando chegavam em casa, trocavam mensagens pelo celular.
O dia seguinte sempre começava com a mensagem de um deles. Esse ritmo durante a
semana não era mais suficiente. Começaram a se ver aos domingos. Davam voltas
pela orla, se deitavam na grama do parque ou apenas andavam de ponta a ponta de
uma feira de rua provando frutas. Falavam sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
Assuntos rasteiros, divagações profundas sobre carreira e outras masturbações
verbais. Apenas sobre uma coisa eles não falavam, vida amorosa. Guilherme nunca
perguntou ou insinuou com indiretas ter interesse em saber dessa parte da vida
de Anita. Ela, por sua parte, nunca quis saber da dele. Na realidade, sempre
quis saber, principalmente depois que ouviu de Gabi que ele pegava várias
alunas. O que ela não queria era ouvir a verdade.
Já para o final do semestre, teve o
aniversário da Anita. Ela marcou com as amigas e parentes em um bar pequeno
próximo de casa. Foi aquela mesa enorme. Falatório alto, risadas e muitas
bebidinhas e comidinhas. Apesar de a noite ter sido bastante divertida e
animada, Anita não estava satisfeita por completo. Vez ou outra ela esticava o
olhar para a outra ponta da mesa e via uma cadeira vazia. Estava faltando uma
pessoa. Guilherme não foi. Gabi percebeu que ela estava um pouco chateada e
conseguia entender facilmente o motivo. Para ela, aquela seria uma oportunidade
de ouro, pois tinha ido à festa com um plano traçado. Gabi apresentaria um
amigo à Anita naquela noite. Ela precisava começar a se interessar por outra
pessoa.
- Amiga, esse é o Fernando. Aquele
menino que te falei que faz engenharia civil lá na faculdade.
Gabi nem esperou os dois terminarem os
dois beijinhos tradicionais de cumprimento de cariocas. Ela se virou e foi se
sentar longe dos dois. Até que eles se deram bem. O Fernando tinha uma conversa
boa. Em poucos minutos, ele conseguiu deixar a Anita confortável a ponto de rir
de comentários engraçadinhos. As horas passavam, os convidados iam embora e lá
estavam os dois de conversa em uma ponta da mesa. Já para o final, após fechada
a conta da mesa, Fernando propôs à Anita que fossem para outro lugar. Ela
topou. Andaram até o carro dele e, antes que colocasse a chave na ignição,
Fernando a beijou. Foi curto, foi bem morno, foi esquecível. Anita sorriu sem
graça.
- Olha, Fernando. Você parece ser um
cara bem legal. Acontece que infelizmente a minha cabeça está em outro lugar.
Peço que me desculpe. Adoraria ter te conhecido no ano passado noutra época.
Posso te pedir apenas uma coisa? Se não for pedir muito, me dê uma carona até
um local?
Com a carona do solícito Fernando,
Anita chegou a um pub chamando On The Rocks. Era daqueles pubs que as pessoas
compram as bebidas e ficam na rua mesmo porque no espaço interno mal os garçons
conseguem se locomover. Com a sensação de ter o coração preso na garganta, ela
começou a procurar pelo Guilherme. Aquele era o lugar favorito dele. Ela sabia
disso, mesmo nunca tendo sido levada por ele para lá. Seu receio era encontrar
o Guilherme com outra mulher. Ou pior do que isso, com outra aluna. Como uma
assombração, ela vagou entre pequenos grupos, casais e bêbados solitários. Em
certo momento, Anita viu o Guilherme e respirou aliviada. Ele estava só.
- Você não foi ao meu aniversário. Por
quê?
- Não sei.
- Como não sabe? Você deixou de ir ao
meu aniversário para ficar aqui escorado em um poste bebendo sozinho. Qual a
razão disso?
- Já disse, não sei.
- Você ao menos refletiu sobre? Ficou
mais de dois minutos pensando se deveria ir ou não?
- Anita, por favor...
- Não tem por favor, Guilherme. Eu te
chamei para o meu aniversário. Você sabia que estava muito empolgada para ele e
queria que estivesse lá.
- Ah, Anita, estamos lá todos os dias.
Digo, estamos juntos todos os dias.
- EXATO! Estamos juntos todos os dias.
Todo santo dia! E logo no meu aniversário você resolve sumir?
- Eu não sumi. Tanto que me achou com
facilidade.
- EU TE ACHEI! Eu tive de te achar
porque você sumiu. Você não apareceu onde pedi. Sequer mandou uma
justificativa. Aliás, ainda nem se desculpou por isso.
- Anita, tente entender...
- Não, Guilherme! Não tem o que
entender. É tudo muito pior porque você sequer mandou uma mensagem de feliz
aniversário. Qual é a sua desculpa de não ter enviado uma mensagem de feliz
aniversário? Nós nos falamos todos os dias. Se pegar o seu celular aí, você
verá a conversa de ontem. Se eu te pedir para me falar qual foi a última
palavra que foi dita anteontem você vai demorar uma eternidade para responder.
Sabe por quê? Porque nossas conversas são intermináveis. Ficamos horas e horas
nos falando todos os dias. Você vai precisar de quase uma hora para passar toda
nossa conversa de ontem até achar a de anteontem. Daí eu te pergunto, como pode
uma pessoa que fica tanto tempo conversando com outra, dia após dia, não ter
enviado uma mensagem de feliz aniversário? Apenas uma maldita e curta mensagem
escrito feliz aniversário. Não faço questão de um texto enorme, como você já
mandou algumas vezes para me consolar nas minhas fases cabisbaixa por conta de
nota. Nem mesmo exijo a escolha de palavras bonitas como costuma fazer para me descrever
quando fico boquiaberta com as coisas que me apresenta. Queria apenas um feliz
aniversário. Queria apenas você sentado do outro lado de uma mesa com trezentas
pessoas. Podia até estar calado como está agora. Mas estaria lá e isso me faria
muito feliz. A sua ausência hoje, a sua indiferença e sua passividade mediante
a minha exposição aqui machuca. Ela joga fora tudo que convivemos. Tantas conversas,
tanta cumplicidade, tanto companheirismo. É como se nada tivesse acontecido
antes. Estou me sentindo uma estranha à sua frente. Vamos fazer o seguinte.
Vamos fingir que esteve ocupado o dia todo e marcamos aqui para comemorar o meu
aniversário. Estou acabando de chegar e você me dá os parabéns.
- Feliz aniversário.
- Ah, mas nem a pau que você vai me
dar essa merda de feliz aniversário borocoxô. Em dia de ressaca você me recebe
muito mais empolgado em sua sala. É mocinha, gatinha, minha linda. Até quando
quer implicar comigo me chamando de mala e carrapata, você fica mais fofo e
autêntico. Pode tentar novamente.
- Feliz...
- Ah, espere! Eu quero um beijo
também.
- ANITA!
- Anita o quê?
- Você está bêbada?
- Não, não estou bêbada. E, se
estivesse, não teria te pedido isso. Já teria feito. Anda! Um feliz aniversário
amável terminado com um beijo melhor que a coisa sem graça que acabei de
receber do menino que me deu carona.
- Você beijou outra pessoa?
- Se aquilo pode ser chamado de beijo,
sim. Por quê? Está com ciúmes? Te incomoda imaginar outra pessoa encostando a
boca na minha? Nossas línguas se tocando, quentes e molhadas, é ruim de
imaginar? A ideia de saber que desejei beijar outra pessoa te dá náuseas?
- Anita...
- Relaxa. Você está branco. Era um
amigo que a Gabi tentou empurrar para cima de mim. Ele veio me dar um beijinho.
Foi uma merda de cinco segundos. Nem deu para molhar a língua. Anda! Para de
drama e rodeios. Feliz aniversário e aquele beijo que nunca mais esquecerei.
- Não, eu não vou te beijar. Ainda
mais depois de ter beijado um moleque qualquer.
- Ah, mas você é muito ordinário
mesmo. Beijou várias por aí. Deve ter uma coleção de saliva de aluninhas na sua
boca e quando é comigo quer bancar o correto.
- Não é querer bancar o correto. É que
com você não posso fazer.
- Por que não pode?
- Porque você está apaixonada por mim.
Anita não respondeu. Se fosse a Gabi
no lugar do Guilherme falando a mesma coisa, ela teria várias respostas e argumentos
prontos para tentar negar o inegável. Contudo, aquela mesma frase vindo do
Guilherme era uma verdade que surgia como uma mordaça que não dava a
oportunidade de rebater. A quem Anita queria enganar? Se tentar mentir para a
Gabi era complicado, imagine para ele. Não, para ele não era possível mentir.
Ainda mais porque tudo que Anita queria era confirmar isso para ele. Ela
precisava externar aquilo. Era preciso expor todo aquele sentimento tolhido que
ela secretamente cultivava em uma relação de amizade estranhamente intensa.
- É isso, Anita. Eu não posso. Você
não é uma menina que age como uma pipa avoada como eu. Não seria capaz de sair
com você e no dia seguinte fingir que nada aconteceu. Seria bastante
constrangedor te receber na minha sala na manhã seguinte e ter de falar para a
pessoa que está apaixonada por mim que foi apenas uma noite. Você acha que
conseguiria manter o contato comigo depois disso?
- CLARO QUE NÃO! Assim como não vou
conseguir depois de hoje. Acha que é fácil seguir como se nada tivesse acontecido
depois de ouvir de você que sabe que estou apaixonada, mas a recíproca não é
verdadeira? Acha mesmo que, depois desse discurso, eu vou conseguir manter
contato com você? Você acaba de me dar o pior aniversário da minha vida. Você é
capaz de entender isso?
- Anita, isso que disse foi unicamente
para o seu bem. Preciso que entenda que...
- Para o meu bem? Se fosse para o meu
bem, você não continuaria dando corda até hoje. Se fosse mesmo para o meu bem,
você sabendo que estava apaixonada, iria cortando aos poucos. Exatamente como
fez quando te chamei a primeira vez para uma volta nas férias e você sumiu até
o início das aulas. Não, Guilherme, não é para o meu bem. É para o seu bem. É
para a sua maldita covardia. Porque isso que você é! Você é um covarde que tem
medo de se envolver comigo. Fica me mantendo por perto. Deixa que eu fique ao
redor massageando seu ego. Sou o seu relacionamento perfeito. Só que na hora de
satisfazer seus desejos, prefere procurar pessoas desapegadas aleatórias. Você
quis sair como o correto, mas escute, o que você está fazendo é muito pior do
que dar um beijo de feliz aniversário em uma pessoa apaixonada. Isso que você
faz não é legal, machuca e torna a minha vida muito mais difícil.
- E você acha que as coisas são fáceis
para mim? Você acha que é tranquilo ter uma diabinha como você no meu ombro
todo dia? O que você acha que passa na minha cabeça? Nada? Exato! Nada! Porque
não tem espaço para mais coisas alguma. Tudo que penso dia e noite é você.
Sonho com você. Acordo e vou correndo para o celular esperando ter alguma
mensagem sua. Se não tem, eu mando porque não consigo esperar. Conto os minutos
para você aparecer na minha sala e me tirar horas de produtividade para falar
nada. Eu não faço mais coisa alguma da vida a não ser pensar em Anita. Só que
eu não consigo me livrar disso. Até porque eu não quero. Ainda assim, sei que
isso não é saudável ou recomendado.
- Como não é saudável? Somos duas
pessoas que se gostam. Qual o problema nisso?
- Como vou ter um relacionamento com
uma menina de 19 anos? Como posso assumir um relacionamento com uma aluna de 19
anos?
- Guilherme, a universidade toda fala
de nós dois. O dia que assumir algo comigo não será surpresa alguma para as
outras pessoas.
- Mesmo assim! Você tem 19 anos.
- Qual o problema nisso?
- Sabe quantos homens da minha idade
se relacionam com meninas da sua idade? Sabe quantos desses homens que se
relacionam não se passam por pervertidos? Nenhum! Porque todo mundo sabe que um
homem da minha idade saindo com uma menina da sua é perversão. Não existe
compatibilidade. É uma diferença de gerações.
- Você está doido, Guilherme. Até
concordo que, na maioria, relacionamento com essa diferença de idade fica
parecendo perversão. Só que no nosso caso é diferente. Nós temos
compatibilidade. Como ficaríamos horas nos falando se não tivéssemos? Saímos junto
todo final de semana. Não existe diferença de cabeça ou de gerações aqui. Pare
de tentar sustentar seu medo em desenvolver um relacionamento comigo na nossa
diferença de idade.
- Não é a diferença, Anita. É a sua
idade. Você é muito nova. Você ter 19 anos é muito assustador para um homem da
minha idade.
- O que você sugere? Que vamos ficar
nessa convivência louca e agora assumida até eu completar... sei lá... até meu
aniversário de 21 anos? É uma boa idade para você?
- Não sei. Tudo que eu queria era que você
fosse uma veterana prestes a se formar. Tornaria tudo mais fácil.
- Só que eu não sou. Para piorar, o curso
de engenharia demora 5 anos. Temos 3 anos e meio pela frente. Como vamos fazer?
Porque agora que tudo isso foi dito, nada será mais como antes. Lembra-se de
quando disse estar preocupado em como agir naturalmente no dia seguinte caso me
desse o beijo? Agora é muito pior. Acha que consegue me receber na segunda-feira
depois disso tudo dito? Acha que teremos qualquer outro assunto que não seja
esse? O cenário mudou, Guilherme. Precisamos tomar uma decisão agora. Não tem
mais volta. Não dá mais para agirmos indiferentes ao que foi falado aqui.
- Eu sei, Anita. Eu sei. Podemos ao
menos tentar...
- Tentar o quê, Guilherme?
- Tentar seguir como estávamos antes.
Aguardar o tempo passar. Esperar o momento certo.
- Você quer me manter em banho-maria
até o final da faculdade? É isso mesmo que entendi? Guilherme, na sua cabeça
existe algum botão chamado stand by?
Porque na minha não tem. Não existe. Eu vou enlouquecer se tiver que passar
mais um semestre com você desse jeito. Sabe o que vai acabar acontecendo? Vai
aparecer outro Fernando como hoje. Só que dessa vez ele vai ter pegada, vai
despertar algo em mim e você vai me perder.
- Ótimo!
- ÓTIMO?
- CLARO QUE NÃO! Odiaria te perder e
me culparia pelo resto da vida. Todavia, não posso negar que solucionaria essa
aflição. Seria uma solução dolorosa, mas solucionaria.
- Aflição? Não existe aflição,
Guilherme. Existe essa teoria de merda que você colocou na cabeça que não pode
se relacionar com uma menina de 19 anos mesmo sendo assumidamente louco por ela.
- Eu sei disso. Eu sei! Só que eu não
consigo. Não adianta. Só nos cabe esperar e ver o que acontece.
- Não, não nos cabe esperar coisa
alguma. Cabe a você esperar. Eu não quero esperar. Isso é uma decisão sua.
APENAS SUA! Isso não é justo. Eu não vou esperar. Eu não vou ficar à sua
disposição por conta de uma teoria maluca. Eu não sou capaz de lidar com isso.
Assim como não estou sendo capaz de lidar com essa merda de aniversário que você
acabou de estragar. Escute, Guilherme. Nunca pensei que você fosse me
decepcionar. Nunca mesmo. Sempre te achei um cara fascinante e por isso me
apaixonei por você no primeiro minuto que te vi. Ainda assim você conseguiu.
Você me decepcionou. Você acabou de me decepcionar e da maneira mais horrível
que existe. Você destruiu o meu coração. Espero que o tempo que você precise
para me superar seja, no mínimo, a metade do tempo que precisarei para
cicatrizar o meu coração. Porque se for isso, você vai gastar o resto da sua
vida. Adeus, Guilherme.
- Anita... Anita... ANITA!
Anita se foi e Guilherme não correu
atrás. Na semana seguinte, ela não apareceu uma vez sequer na sala dele. Foram
longos dias com o Guilherme olhando celular na expectativa de uma mensagem
dela. Nada! Na sexta-feira, ele se esbarrou com a Gabi pelo campus. Tentando
parecer descolado, ele perguntou pela irmã siamesa dela.
- Você não soube, né? Então,
Guilherme, ela trancou a faculdade. Vai tentar transferência para outra no
semestre que vem.
Guilherme nem agradeceu pela resposta
da Gabi. Ele apenas se afastou e pouco mais à frente se sentou em um dos bancos
de concretos do pátio. Pegou o celular e foi até o contato da Anita. Algo
precisava ser feito. Aquilo não podia continuar daquela forma. Anita tinha
tomado uma grande decisão na sua vida por conta de uma teoria dele. Guilherme
se sentia culpado por ter permitido que ela se envolvesse, que ele se
envolvesse e que o ápice tenha sido daquela forma desastrosa. Sem enxergar
outras opções, Guilherme não hesitou e apagou o contato de Anita. Na cabeça
dele, a vida precisava seguir com cada um sofrendo em caminhos diferentes.
Outro conto da coleção? Leia Fátima