Do êxtase à merda e vice-versa
Tinha me fodido no primeiro final de
semana do Rock in Rio 3. Achava que dava para ir para casa e voltar no dia
seguinte, mas tudo que consegui foi me cansar mais ainda. A estrutura não era
compatível com a grandiosidade do evento. Sair de lá era um martírio, chegar
era uma batalha, tudo demorado e sofrido, muito engarrafamento, poucos ônibus e
todos lotados. Ao final do show do Sting, no primeiro dia, não tinha ideia de
como seria, então resolvemos ficar um pouco por lá bebendo para fazer hora e
deixar o público dispersar. Não poderia ter sido pior. Tivemos de andar da
Cidade do Rock até o Via Parque para conseguir um ônibus. Isso já era por volta
de quase cinco da manhã. Estávamos bêbados e exaustos. Os passos eram lentos e penosos.
Chegamos depois das seis, esperamos para pegar outro ônibus, fomos até o
Terminal Alvorada, esperamos mais uma vez, pegamos um segundo ônibus, daí,
depois da longa e vagarosa Estrada do Alto da Boa Vista, finalmente chegamos à
Tijuca com o relógio quase batendo meio-dia.
Tivemos tempo apenas de tomar banho,
mudar de roupa, comer algo e já voltar para a Cidade do Rock, pois REM e Foo
Fighetrs nos aguardavam. Ou ao contrário. Ainda assim, só chegamos de noite.
Não vimos os peitos murchos da Cassia Eller, nem a mala da Fernanda Abreu.
Ignoramos o Barão para beber (eu sei, heresia minha), do almofadinha do Beck em
diante vimos tudo. Alteramos, ao final do dia, a estratégia. Terminado o show,
iríamos direto para casa. Não mudou muita coisa. Chegamos tão tarde quanto o
dia anterior em casa, fizemos tudo correndo e, de qualquer forma, mais uma vez,
não deu tempo. No domingo não chegamos a tempo de ver Pato Fu (que triste,
não?), mas consegui jogar duas garrafas no Carlinhos Brown e, colado na grade,
gritei algo quase ao seu pé do ouvido que ele, com certeza, escutou e nunca
mais se esquecerá. Fora isso, vimos os demais shows. Ao final do dia, o
consenso era único: foi uma maratona muito cansativa. Tomei a iniciativa e
sacramentei que nos próximos dias não voltaria para casa. Daríamos um jeito,
mas ficaríamos por lá. Levaríamos na mochila várias camisas para trocar e seria
o suficiente. Os imbecis que me acompanhavam aprovaram a ideia de merda e assim
seria no final de semana seguinte.
Era fato que isso daria errado,
principalmente quando optamos em, além de usar essa estratégia, ir também na
quinta-feira das boybands. A
motivação era simples, estaria cheio de menininhas, faríamos a festa. Ledo
engano. Não quando falo da quantidade de menininhas, isso foi um acerto.
Parecia o encontro mundial de colegiais. O erro estava em achar que iríamos nos
dar bem. Todas só davam atenção para o palco. Nenhuma estava no clima de
pegação. Isso sem contar as que estavam acompanhadas da mamãe, madrinha, titia
etc. A opção, como sempre, foi beber. Primeira noite de quatro seguidas e
estávamos bêbados antes das 22 horas. Terminada a tortura de gritos, playbacks, infinitas trocas de roupas e
coreografias, finalmente a Cidade do Rock estava vazia. E agora? Resolvemos nos
juntar a alguns grupos que já faziam fila para o dia seguinte. Aparentemente se
manter acordado bebendo com fãs de Iron, Sepultura e QOTSA não era uma boa
ideia. Especialmente quando você já começa com várias doses de vantagem na
largada. Obviamente antes do meio-dia estávamos desmaiados na calçada de
cimento quente com sol sobre nossas cabeças. Acordamos com o tumulto da
abertura dos portões. Nós deitados e vários trogloditas correndo ao nosso
redor. Parecia que estávamos no meio do estouro de uma boiada. Não sabia se me
encolhia, tentava desviar, me levantava, fingia de morto. Por fim,
sobrevivemos, nos levantamos e entramos destruídos e ainda bêbados. Não
estávamos prontos, mas era o que tinha de ser feito.
Com os shows da sexta foi mais fácil
ver o dia passar. Muitas rodinhas, pula-pula, cantoria e bagunça. Em
contrapartida, foi mais fácil ficar cansado, desidratado e com fome. Paramos na
cerveja e resolvemos torrar uma grana em refrigerante e sanduíches. Isso por
volta do final do show do Rob. Comemos como ogros, ficamos pesados e nos
arrastávamos pela Cidade do Rock para o início do show do Iron. Ao término, o
que mais temia aconteceu, precisava desesperadamente ir ao banheiro.
- Porra – disse o Leo. – Vai então,
viado!
- Não tem como – respondi. – Não dá!
- Ah que fresco! Está com nojinho?
Caga de pé sem encostar na privada.
- Não é esse o problema – expliquei. –
Não tem condições para fazer.
- Relaxa – disse David. – Vou lá no
Bob’s, pego uma porrada de guardanapo e você usa como papel higiênico.
- Caralho, seus merda – estava ficando
enfezado literalmente. – Isso não resolve! Só sei cagar se tiver bidê,
chuveirinho ou como tomar banho depois.
Se me recordo bem, eles ficaram rindo
pelo chão por uns quinze minutos. Foi tempo de muitas pessoas terem ido embora
e a Cidade do Rock ficar consideravelmente vazia. Nesse tempo a pressão estava
maior e não teria como aguentar até chegar em casa, tão pouco ficar mais dois
dias naquele estado. Resolvi bolar uma solução.
- Fiquem aí então – falei. – Vou ali
comprar umas garrafas de água e dou meu jeito.
Eles riram mais ainda. Fui até o
quiosque mais próximo e vi que estavam com uma queima de cervejas para fazer a
troca do dia seguinte. O preço estava muito mais barato que a água. Não pensei
muito e comprei cinco copos de cerveja. Passei por eles e, assim como vocês que
não estão acreditando no que leem, eles não acreditavam no que viam. Mas o fato
é que caguei e limpei a bunda com cerveja. Por conta disto, acredito que seja
uma das poucas pessoas no mundo que bebeu Schincariol como deveria ser feito. Aquela
merda tem de ser consumida pelo rabo. Sendo hoje, adoraria passar em uma blitz
da Lei Seca só para testar o que aconteceria se peidasse no bafômetro. Acredito
que os fiscais ficariam surpresos. Terminada a tarefa, notei que fiquei muito
mais bêbado do que antes. Não sei se tinha alguma relação com a mucosa do reto
absorvendo bebida alcoólica ou com a grande carga calórica que desperdicei, mas
a realidade era que tinha ficado bêbado pelo cu. Saí do banheiro cambaleando e,
com a ajuda deles, conseguimos sair da Cidade do Rock. Foi o tempo certo para
deitar novamente naquela calçada dura e apagar. Lembro de alguns risos finais
deles, ainda assim dormi como um bebê recém trocado pela mãe que passou lenço
umedecido de cevada.
Acordei depois das dez da manhã.
Falaram que me cocei a noite toda. Imagino que seja verdade, pois a combinação
cerveja com bunda, calor e calça jeans não é muito convencional. Eles já
estavam despertos e comendo uns biscoitos que, segundo me contaram, compraram de
umas meninas que estavam na fila para o show de sábado. Peguei alguns, mal comi
todos, já estava me coçando. Era desesperadora a coceira. Dava vontade de
arrancar o cu fora. Levantei-me e saí do meio do grupo:
- Vai cagar novamente?
- Não – respondi. – Vou comer sua mãe.
- Não se esqueça de depois limpar o
pau com guaraná.
Mandei se foder e fui atrás de um
vendedor para comprar água. A ressaca era grande e ainda tinha a urgência de
lavar uma bunda que foi lavada com cerveja. Acho que deu para entender. Depois
de vinte minutos atrás de uma van de transmissão e três garrafas d’água, lá
estava eu, novo e com a bundinha mais limpinha da Cidade do Rock. Reuni-me com
eles e esperamos o abrir dos portões.
Não vou mentir ou querer bancar o
durão. Por diversas vezes cogitamos ir embora e desistir do show daquele dia
para descansar. Por sorte, ou infeliz coincidência, raramente cogitávamos isto
ao mesmo tempo, então, quando um queria desistir, os demais convencia do
contrário. Foi duro, mas entramos para o terceiro dia seguido e sexto de
evento.
A programação do sábado era boa, mas
ao mesmo tempo chata para quem estava no limite. David Matthews e Sherryl Crow criaram
vários momentos soninho, Kid Abelha e Engenheiros do Hawaii criaram vários
momentos para o suicídio. A solução era dar uma volta e tentar conhecer alguma
gata.
Bruninha devia ser dois ou três anos
mais velha do que eu na época. Provavelmente beirava os 25 anos. Tinha uma
altura mediana, cabelos escuros lisos, pele bronzeada, olhos enormes de
brilhantes e um sorriso que se assemelhava ao do gato do conto da Alice no País
das Maravilhas. Dificilmente conseguiria se passar por normal, inclusive se
esforçasse. Ela que puxou assunto comigo. Algo relacionado a estar dormindo de
pé. De fato estava complicado permanecer acordado. Saímos da multidão e nos
sentamos no chão, um com as costas apoiada na do outro. Parecia estranho
conversar com alguém de costas para você, mas era confortável e, o fato de não
olhar diretamente para ela, me dava mais coragem para falar besteira. Bruninha
era muito interessante, tinha características que me fascinavam na época,
dentre elas, ser mulher (obviamente), mais velha e falante (perdoem o
pleonasmo), mas me dar atenção era a mais predominante da lista. Por mim,
ignoraria totalmente os shows seguintes e ficaria de conversa com ela. Não
queria mais sair de lá. A conversa fluía, ela entendia meu sarcasmo e eu
acompanhava os deboches dela. Parecia que nos conhecíamos há anos. Queria muito
beijá-la, mas por estar de costas não era possível e, além disto, estava suado
e sem tomar um banho decente fazia dois dias. Continuamos conversando então.
- Acorda aí – disse Sergio me
cutucando com os pés. – Acorda, cara!
- O que foi – perguntei, ainda sonado
e deitado no chão. – Que foi?
- Está dormindo no chão! Cadê a
moreninha?
Ela tinha ido embora. Peguei no sono
no meio da conversa e ela foi embora. Fiquei ali na grama dormindo sonhando com
o resto da nossa conversa.
- Peguei no sono.
- Estou vendo. Pegou ela pelo menos?
- Não. Peguei no sono.
- Você dormiu enquanto dava ideia na
garota, seu merda?
- Estou cansado, porra!
- Ei, Leo – gritou o Sergio para o Leonardo
que se aproximava. – Não é ele que tem aquela história de ter dormido no meio
das preliminares com a namorada?
- Ele mesmo – concordou o Leonardo. –
Por quê? Dormiu enquanto pegava a morena?
- Pior – respondeu o Sergio já rindo.
– Dormiu antes de pegar. Enquanto dava ideia nela.
Eu sei, tinha me superado dessa vez. A
história da namorada era verdadeira e agora essa. Para minha defesa, em ambos
os casos estava bêbado e vindo de uma rotina cansativa. Ainda assim, dormi no
meio da ação uma vez e, noutra, dormi enquanto batia o papo mais animado e
entrosado da minha vida. Um merda sempre faz merda. Levantei-me e os acompanhei
para o resto do dia.
Terminado o show do Neil Young, lá
fomos para a calçada nos acomodar com outros dementes como nós. Eu sabia que
dava para dormir mais uma noite na calçada, mas não suportaria mais uma manhã
dormindo com sol forte e calçada quente. Foi quando avistei uma Blazer.
- Ei cara – falei com um homem
encostado no carro. – É sua?
- Sim.
- Vai sair agora?
- Não, vou ficar para os shows de
domingo.
- Cara, que ótimo. Preciso muito
dormir.
- Ah, mas nem a porrada que vai dormir
dentro do meu carro.
- Não. Não me entenda mal. Vou dormir
debaixo do seu carro. Só preciso de sombra e a certeza de que não vai sair me
arrastando por aí.
- Relaxa. Deita lá.
Comecei a me ajeitar para me enfiar
sob o carro quando os meninos apareceram me chamando de doido por fazer aquilo.
Expliquei meus motivos e eles argumentaram que debaixo do carro era
praticamente terra, sequer tinha grama.
- Porra, pouco me importa. Estou com
essa merda de calça há três dias. Trocamos de blusa após tomar um banho de gato
com garrafa de água mineral. Acham mesmo que no último dia vou me importar em
dormir na terra?
Deitei-me e dormi como um bebê
guaxinim. As formigas que fizeram do meu corpo, principalmente o rosto, a sua
Cidade do Rock não me deixaram desconfortável. O suor do calor que transformava
a terra em um barro levemente fresco nem me abalou. Nada me incomodava. Era
como dormir em casa. Fui de quase seis da manhã até duas da tarde. Acordei
novo. Costas e pernas não doíam mais. Era possível finalmente, depois de tantos
dias, suportar uma noite inteira de shows. Levantei-me tão empolgado que dei
uma porrada com a cabeça no chassi do carro. Fez um galo que iria me incomodar
o resto do domingo. Saí de debaixo do carro, vi os meninos suados, sofrendo no
sol e eu com a pele praticamente imaculada de longas horas em uma sombra
própria. Agradeci ao dono do carro que já estava acordado conversando com os
amigos. Sacaneei os imbecis que ficaram no sol mais uma manhã, fui comprar
algumas garrafas de água e repeti o ritual dos outros dias. Tirei a camisa,
joguei água no peito, braços e axilas, sequei-me e troquei de camisa. Depois
forcei o vômito até expulsar a última gota remanescente dentro de mim, fiz
gargarejo com a água que restava para tirar o gosto ruim da boca e voltei.
Comprei duas Cocas, um pacote de biscoito e lá estava preparado para o sétimo
dia.
A última noite foi finalmente de
diversão. Curti todos os shows do início ao fim, diferentemente dos que me
acompanhavam que estavam mais mortos do que nunca. Não sei de onde tirei que
seria uma boa ideia a maratona no formato que insistimos em manter, tampouco
sei dizer por qual motivo não abortamos na primeira noite para refazer os
planos. Talvez seja porque éramos muito novos e tudo era festa, ou apenas éramos imbecis mesmo, ou, a melhor das hipóteses, éramos jovens imbecis
bêbados. De qualquer forma, minha relação de gratidão e amor ao Rock in Rio
permaneceu inalterada. Continuo o mesmo menino que foi deixado na casa dos avós
para que os pais pudessem ir à primeira edição e assistiu a tudo pela televisão
boquiaberto. Permanece a magia do festival em que, ainda juvenil, tomei meu
primeiro porre e perdi minha virgindade. Agora criara a marca de ser o festival
no qual fiz a minha primeira maratona de shows, quatro dias diretos, “sem
tirar”. Seria melhor se tivesse algum rastro da Bruninha, nenhum galo na cabeça
ou mais shows aproveitados. No entanto, a experiência foi válida, pelo menos
até a próxima versão.